Sunday, December 10, 2006

Oitenta anos de "O estrangeiro"

Por Victor Emanuel Vilela Barbuy

Está passando em brancas nuvens o octogésimo aniversário da obra “O estrangeiro”, que abriu a trilogia de “Crônicas da vida brasileira”, configurou-se como um marco de renovação do romance neste País e fez de seu invulgar autor, Plínio Salgado, um romancista renomado e consagrado pela crítica.
No magnífico artigo que o Prof. Miguel Reale, de saudosa memória, publicou no jornal “O Estado de São Paulo” a 25 de fevereiro de 1995, ano em que era celebrado o centenário de Plínio Salgado, observou o grande filósofo, jurista e Imortal que “o silêncio da imprensa e de todos o meios de comunicação a respeito do centenário do nascimento de Plínio Salgado demonstra quanto pode a força do preconceito e notadamente do preconceito ideológico, capaz de obscurecer o real valor de nossos homens mais representativos. Porque Plínio Salgado, visto geralmente apenas sob o prisma da falsa ‘vulgata’integralista' disseminada por esquerdistas de todos os naipes, reuniu, como bem poucas personalidades, o que há de mais característico, positiva e negativamente, na cultura brasileira.”
O autor de “O Estado Moderno” e de “Pluralismo e liberdade”, fundador do Instituto Brasileiro de Filosofia e da “Revista brasileira de Filosofia”, criador da Teoria Tridimensional do Direito e idealizador do novo Código Civil brasileiro terminou o artigo observando que não alimentava a esperança de que seu pronunciamento pudesse fazer “justiça ao grande paulista e brasileiro que foi Plínio Salgado, pois só o tempo o fará; mas ele por certo pensava, como Siqueira Campos, que tanto admirava, que da Pátria nada se espera, nem mesmo compreensão.”
Tudo aquilo que disse o Prof. Reale lamentavelmente continua válido, explicando o criminoso silêncio da mídia em relação aos oitenta anos do nosso primeiro romance social em prosa modernista.
Em nosso País, cuja “intelligentsia” tende a perdoar todos os inumeráveis crimes da “esquerda”, ao mesmo tempo em que persegue inquisitorialmente todos aqueles que se batem contra o materialismo, difamando-os, caluniando-os e achincalhando-os, pouquíssimas são as pessoas sinceras que, quebrando as cadeias do preconceito ideológico, analisam Plínio Salgado e sua obra por aquilo que verdadeiramente são e não pela imagem deturpada que seus inimigos e os inconscientes e ignorantes a seu serviço criaram deles, fazendo-lhes, assim, justiça.
Parece-me, entretanto, que as coisas estão principiando a mudar, ainda que lentamente, de modo que creio na restauração da Verdade, na justíssima reabilitação do autor de “O estrangeiro”, “O esperado”, “O cavaleiro de Itararé”, “A voz do Oeste” e “Vida de Jesus”, cujo valor literário concede-lhe, como bem sublinhou ninguém menos que Juscelino Kubitschek, “a autêntica palma da imortalidade”.
A idéia de escrever “O estrangeiro”, que tivera sua gênese nas leituras de autores espiritualistas e tradicionalistas que haviam despertado em Plínio Salgado novas inquietações aparentemente adormecidas sob a leitura dos filósofos materialistas do séc. XIX, só tornou-se definitiva – como relatou o romancista em entrevista a Silveira Peixoto publicada em 1940 na primeira série da obra “Falam os escritores” – no decorrer de uma viagem que fez à zona Araraquarense, por volta de 1923, em companhia de Alarico Silveira, então Secretário do Interior de São Paulo.
O sucesso de “O estrangeiro” foi algo realmente extraordinário. A primeira edição esgotou-se em menos de três semanas e o burburinho que se fez em torno do romance, na imprensa nacional, foi espantoso e mostrou ao autor que ele havia acertado. Mas ele ignoraria tudo o quanto então se publicava a respeito dele e de sua revolucionária obra, se não fosse por seu amigo Fernando Callage, que colecionava todos os artigos, posto que naquela ocasião, na pequenina, bucólica e tradicional São Bento o Sapucaí, falecia a mãe de Plínio Salgado, que, estando já à beira da morte, tomou o livro do filho nas mãos, projetando lê-lo mais tarde, quando estivesse melhor, o que infelizmente não ocorreu...
Plínio Salgado é – em “O estrangeiro” e nos dois romances que lhe seguem e formam com ele a trilogia de “Crônicas da vida brasileira” – o genial cronista, intérprete de uma época de dúvidas e de incertezas que, imbuído dos ideais dos mais sadios patriotismo e nacionalismo e livre de todas as questões da forma e do estilo, revela-se um espectador e conhecedor de todas as correntes ideológicas e de todos os dramas das diferentes classes sociais. É, ademais, dotado de uma formidável capacidade de compreender e amar todos os antagonismos, bem como de alma para efetivamente sentir, sofrer e expressar, sem temor ao uso da palavra, todos os complexos estados de espírito nacionais.
Sua obra, na qual podemos sentir o cheiro de nossa terra, é ao mesmo tempo uma magistral exposição dos problemas que afligiam – e afligem – o Brasil e o seu povo, e uma profissão de fé do autor no futuro da Pátria.
Plínio Salgado, figura exponencial do Modernismo brasileiro, foi, como disse Augusta Garcia Rocha Dorea, o escritor que realizou totalmente o “espírito animador” da Semana de Arte Moderna, uma vez que pugnou pela nacionalização integral do Brasil “na literatura, no espírito e nos costumes do povo, na cultura e na política.”
O livro de Plínio Salgado é, antes de tudo, uma crônica das vidas paulista e brasileira entre princípios da década de 1910 e a época em que foi concluído, com a fixação de aspectos da vida rural, da vida provinciana e da vida na grande urbe (São Paulo).
O ciclo ascendente do colono é simbolizado pelos Mondolfis, italianos que chegam da Península sem mais do que algumas trouxas de roupa e em poucos anos, com o suor de seus rostos e uma certa dose de sorte – a geada que poupa os cafezais de Carmine Mondolfi, o patriarca da família, ao passo que devasta todos os outros da região – tornam-se milionários, com cafezais, indústrias, ações majoritárias de uma estrada de ferro, palacete na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, automóveis de luxo e título de “Cavaliere Ufficiale” para Carmine Mondolfi.
O ciclo descendente das tradicionais famílias quatrocentonas, por sua vez, é representado pelos Pantojos, que, grandes fazendeiros no interior, mudam-se para a Capital Paulista, onde vão residir num palacete no aristocrático bairro de Higienópolis, e, após vender a fazenda aos Mondolfis, acabam rapidamente dissipando toda a fortuna nos luxos e vícios da cosmopolita metrópole do café.
Zé Candinho, caboclo rijo e labutador, simboliza os novos bandeirantes, os brasileiros autênticos que, “fortes como fundadores de países”, marcham pelas veredas rumo ao Oeste, ao Sertão, como haviam feito seus antepassados.
Nhô Indalécio representa, ao contrário, os caboclos que não têm forças para lutar, para progredir, e de “olhos morteiros, toadas monótonas nos lábios”, sofrem pelas mãos dos poderosos, nacionais e estrangeiros, diante da completa omissão do Governo.
Juvêncio, o mestre-escola, é o patriota e nacionalista que leva a seus alunos – sejam eles filhos de italianos, espanhóis, portugueses, japoneses, sírios ou caboclinhos e mulatinhos – uma admirável mensagem de civismo, enquanto combate o cosmopolitismo com todas as suas forças. É ele quem estrangula os papagaios que haviam aprendido a cantar o hino fascista “Giovinezza” e outras italianidades e que tentara debalde curar no Sertão, num episódio em que Plínio Salgado manifesta claramente o seu entendimento de que as doutrinas alienígenas jamais seriam a solução para os problemas do Brasil.
Ivan, o russo que fora amigo de Górki e conspirara para matar o czar nos bairros escusos de Moscou, constitui o personagem central do livro. É, como diz o autor no prefácio onde é esquematizada sua obra, a “síntese de todos os personagens, consciência de todos os males”. Tendo enriquecido, tornando-se proprietário de uma fábrica no Brás, o russo, por outro lado, não conseguiu integrar-se ao Brasil – ao contrário dos Mondolfis e em que pese o esforço de Juvêncio – e não foi feliz no amor, de modo que termina por dar cabo da própria vida num ato trágico em que também são mortos todos os seus empregados.
Major Feliciano figura o charlatanismo da política dominante, constituindo o típico político profissional que age sempre em prol do interesse próprio e em detrimento do bem comum.
Eugênio Fortes, o poeta, representa o alheamento dos intelectuais em face da realidade e dos problemas de que padece nossa Sociedade.
O sempre rigoroso Agripino Grieco considerou “O estrangeiro” o melhor romance daquele ano de 1926 e afirmou que, “obra de desafogo mental, útil depoimento de um homem livre, ‘O estrangeiro’ é um livro fervilhante, pululante de idéias, é a obra de um literato que se completa no pensador, no historiador, no sociólogo. Obra panorâmica que faz ver o Brasil de hoje como uma carta em relevo."
Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima) também saudou “O estrangeiro” com entusiasmo, julgando-o “o romance mais dramático de nosso tempo.”
Jackson de Figueiredo analisou, em seu artigo intitulado “O Saci, o Avanhandava e o imperialismo pacífico”, aquela primeira obra romanesca de Plínio Salgado, terminando por observar que “’O estrangeiro’ é mesmo nos seus mais aflitivos e cruéis avisos, um livro de esperança e de fé.”
Monteiro Lobato escreveu, a respeito daquele romance ao mesmo tempo paulista e brasileiro, o texto “Forças novas”, em que, havendo reconhecido que “Plínio Salgado consegue o milagre de abarcar todo o fenômeno paulista, o mais complexo do Brasil, talvez um dos mais complexos do mundo, metendo-o num quadro panorâmico de pintor impressionista e observado que “todo o livro é uma inaudita riqueza de novidades bárbaras, sem metro, sem verniz, sem lixa acadêmica – só força, a força pura, ainda não enfiada em fios de cobre, das grandes cataratas brutas”, termina dizendo que “Plínio Salgado é uma força nova com a qual o país tem que contar.”
Cassiano Ricardo, por seu turno, afirmou que Plínio Salgado é “um brasileiro que conseguiu ‘viver’ o Brasil, penetrar os recantos úmidos da terra, fixar-lhe os aspectos mentais, ouvir o tropel da nação vindoura, adivinhá-la nas intenções mais obscuras de mundo virgem, plasmar o tumulto da cidade babélica" e é ainda "um Alencar corrigido por um Machado.”
Mário de Andrade também não poupou elogios a “O estrangeiro”, que saudou como o maior romance de sua geração.
Muitos anos mais tarde, Wilson Martins classificou “O estrangeiro” como o melhor romance escrito na década de 1920, ao lado de “O esperado”, também de Plínio Salgado.
Antônio Cândido já assumiu que gostava bastante dos romances de Plínio Salgado, de modo que estou certo de que ele só ainda não escreveu a respeito deles por temer a ira daqueles que ainda não se libertaram dos grilhões do preconceito ideológico.
Defenderam alguns, inclusive Miguel Reale, que “O estrangeiro” deveria ser tão lembrado quanto “A bagaceira”, romance de José Américo de Almeida, mas discordo deles, já que “A bagaceira”, como bem observaram Brito Broca, Augusta Garcia Rocha Dorea e outros, bastante fica a dever a seu modelo, que não foi outro senão “O estrangeiro” de Plínio Salgado.
Encerro aqui este singelo trabalho, na certeza de que cheguei ao menos perto de fazer justiça a um dos maiores e menos lembrados livros de nossa Literatura, bem como a um dos mais invulgares e esquecidos escritores pátrios, contribuindo, ainda que infimamente, para resgatar o prestígio de “O estrangeiro” e de seu autor, Plínio Salgado, “esse injustiçado”, como bem disse Pedro Paulo Filho, tendo derrubado algumas pedras do gigantesco e ignóbil muro do preconceito ideológico ainda tão forte em nosso País.