Abdias do Nascimento |
Por Gumercindo Rocha Dorea
Foram diversas as vezes em que nos encontramos no apartamento da Rua Tonelero, residência do maior poeta brasileiro de nossos tempos, Gerardo Mello Mourão. Éramos três integralistas: o mais moço era o signatário da presente nota; Abdias era dez anos mais velho e o autor de Rastro de Apolo, da mesma geração do autor de O negro revoltado.
A presença de Gerardo nos inibia de entrar em acesas discussões. Mas é impossível esquecer a acusação de Abdias (publicada não me recordo onde), de que eu vetava os artigos dele n’A Ofensiva, jornal da Ação Integralista Brasileira. Repliquei (o que deu motivo para ampla risada de Gerardo), esclarecendo que, naquela época, embora já participando da AIB, em Ilhéus, eu tinha apenas... dez anos de idade, e não sabia que gozava de tamanho prestígio para sabotá-lo. “É, foi um engano meu”, reconheceu Abdias. “Então faça o possível para rever a sua afirmação”, respondi. Ele, porém, não emendou o erro...
Mas foi por intermédio de Gerardo que iniciei o meu relacionamento com Abdias, num de meus lançamentos, quando nasceu a ideia de GRD lançar O Teatro Experimental do Negro, indiscutivelmente uma das mais belas edições que produzi, em 1966. Mas esse já não era mais o jovem idealista que participara da Frente Negra Brasileira e do Movimento Integralista, onde encontrara a solução digna do terrível drama dos descendentes daqueles que vieram para o Brasil como escravos, vendidos aos mercadores quase sempre pelos seus próprios chefes de tribo. Esta solução estava no reconhecimento da dignidade da pessoa humana e suas projeções na estrutura social que Plínio Salgado preconizava e inexistente na nossa estrutura social acentuada pelo Integralismo como fundamental na consolidação da Nação Brasileira.
Outras vezes nos encontramos, sempre em reuniões onde Gerardo Mello Mourão se fazia presente. Abdias já tinha preparado um novo volume denominado O negro revoltado, título inspirado no livro de Albert Camus, O homem revoltado. Até 1968, reconhece Abdias, “sumariamente rejeitado pelas editoras” (v. texto publicado in Folha de S. Paulo, 29-5-2011, ilustríssima, p. 7). Mais uma vez fomos honrados pela confiança de Abdias e lançamos o seu novo volume, com uma capa altamente sugestiva de Rubens Gerchman. Releiamos o que disse, como editor da obra, na segunda “orelha” daquele livro:
“O negro revoltado é mais um esforço para o equacionamento definitivo do problema, objetivando-se um ponto nevrálgico de nosso futuro como nação plurirracial: a existência de um povo que poderá mostrar, ao resto do mundo, que é possível conviver-se numa democracia em que o homem seja irmão do homem – e que isto não seja utopia. Para isto, da parte dos negros, exige-se que eles tomem consciência de seu próprio ser – e se afirmem; exige-se que eles se organizem – para se impor. Uma só coisa deles não se pode reclamar: o amor à Pátria, pois que tudo têm dado por ela. É chegado o momento, isto sim, da Pátria chamá-los a si, e agradecer-lhes o que jamais foi regateado – mas que também jamais foi retribuído”.
Confirmando o acima transcrito, pedimos licença para relatar aqui o acontecido entre Gilberto Freyre e o geógrafo alemão Maack, que considerava absurdas as ideias integralistas, expostas em discurso pronunciado em Blumenau por “um dos chefes teuto-brasileiros”, quando este proclamava que “na época de completa confraternização de toda a família brasileira num Estado Integral, não haverá mais diferenças de raça e de cor”. Para o geógrafo Maack, diz Gilberto Freyre, isto seria a “heresia das heresias”. E completa o autor de Casa-grande e senzala: “Para nós, um dos pontos simpáticos e essencialmente brasileiros daquele movimento” (v. Gilberto Freyre, Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira, 2ª ed., Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, 1942, PP. 87-88).
A partir do lançamento de O negro revoltado perdi o contato com Abdias do Nascimento. Soube, posteriormente, que ele fora para os Estados Unidos.
O nosso encontro seguinte foi na África, no decorrer do II Festival de Arte Negra, realizado na Nigéria, em 1977: integrava, então, a comitiva oficial do Brasil, chefiada por Euro Brandão, na época Secretário-Geral do MEC. Por seu lado, Abdias fazia parte da comitiva norte-americana, liderada por um líder racista, e que trazia para o encontro de Lagos o ódio alimentado contra a raça branca, ali ainda virulentamente dominante. Naquela época era totalmente impossível prever-se a eleição de um Obama... Abdias do Nascimento já não mais encontrava no Integralismo a solução para o problema angustiante da integração da raça negra na estrutura do povo brasileiro. Voltava-se, então, para a doutrina do ódio de raça contra raça, se tornando, indiscutivelmente, o seu líder. Esquecia-se, assim, de Plínio Salgado e os integralistas, “de cuja agenda constavam a valorização do mestiço e a dignificação do negro”, nas palavras de Alberto da Costa e Silva (In Viagem incompleta, São Paulo, SENAC, 2000, p. 23).
Dezenas e dezenas de anos lutando por um ideal, mesmo maculado em sua etapa derradeira – a dos últimos anos – por um ódio irracional!
Grande exemplo – se é que no Brasil em que (sobre)vivemos um exemplo como o de Abdias do Nascimento tem ressonância...
Anauê, Abdias!
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Anauê!
Anauê!
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