João Ameal |
Segue belíssimo texto do
grande historiador, pensador e
doutrinador tradicionalista, patriótico e nacionalista português João Francisco de Sande Barbosa
de Azevedo e Bourbon Aires de Campos, 2.º
Visconde e 3.º Conde do Ameal, mais conhecido pelo
pseudônimo de João Ameal (1902-1982), intitulado Presença de Cristo em dois livros de Plínio Salgado e extraído da
obra A verdade é só uma (Porto: Livraria
Tavares Martins, 1960, pp. 41-53). O texto, que aqui apresentamos na ortografia
original, também pode ser encontrado no segundo volume da obra coletiva Plínio
Salgado: “in memoriam” (São
Paulo: Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1986, pp. 148-156).
Fique o leitor com essas belas páginas do ilustre autor da História de Portugal, de São Tomás de Aquino e de Europa e os seus fantasmas, que é, como
seu amigo e irmão de ideal Plínio Salgado, um bravo adail da Fé, da Tradição e
do Império, um augusto cavaleiro da Nova Reconquista.
Presença
de Cristo em dois livros de Plínio Salgado
Por
João Ameal
Dizia
Leopoldo Levaux – um crítico belga desconhecido, segundo creio, em Portugal –
haver certas obras que por si mesmas julgam
os seus autores. Trata-se (acrescentava Levaux) de obras consagradas aos mais
amplos temas, fora da medida comum. O simples facto de se dedicar a tarefas
dessa ordem classifica e revela a envergadura, não só intelectual mas moral, de quem assim volta intrèpidamente
as costas às facilidades da improvisação e do menor-esforço e tenta empresas de
grande vulto e de grande rasgo... Poder-se-ia resumir tal ponto de vista como
variante adequada do velho aforismo popular: “diz-me o que visas, dir-te-ei
quem és...”
Num
momento como este, perante as mil interrogações e apreensões que enchem o
horizonte – é a hora dos pensadores e artistas visarem acima de si próprios, explorarem não as zonas brilhantes e
superficiais do Efémero, mas aqueles altos domínios em que os problemas do
homem, do seu destino essencial, das suas duras lutas, das suas esperanças de
resgate têm de ser vistos em plena claridade, sub specie aeternitatis. Só essas vastas perspectivas são dignas de
absorver os trabalhadores do Espírito – quando em redor, se joga um dos maiores
dramas de todos os tempos...
...
Mas quantos se mostram à altura dos apelos e das responsabilidades do instante
que passa?
2
Plínio Salgado interessa-me e
comove-me por ser artista – dos autênticos; e, também, por ser não apenas
artista. Quando escreve ou quando fala, domina-o invariavelmente o propósito de
cumprir uma alta missão. Fala ou escreve para dar testemunho da Verdade que o
transcende, que nos transcende a todos e que hoje, mais do que nunca, importa
proclamar e difundir. Ao lê-lo e ao escutá-lo, tomamos contato com uma “alma
viva”, segundo a frase do filósofo. Mais: com uma alma que compreende o sentido
total da Vida e tem o dom de acordar essa compreensão à sua volta.
Não
se extravia em aspectos secundários e em temas episódicos; consagra-se a
defender com ardor a Verdade integral, aquela que traz consigo todas as
explicações e soluções – numa época em que os homens sofrem, por certo, das
fúrias desencadeadas da guerra mecânica, da agitação social e política, da crise
económica, mas sofrem, mais ainda, desse mal de raiz que é a intoxicação do
espírito, feita de dúvidas mórbidas, de equívocos pérfidos, de sofismas
insidiosos, de problemas supérfluos ou absurdos.
A
todos os intoxicados aponta Plínio Salgado a soberana Afirmação que dissipa
todas as dúvidas, a soberana Certeza que vence todos os equívocos, a soberana
Realidade diante da qual todos os sofismas se esvaem e que suprime ou aclara
todos os problemas.
Ao
serviço de Cristo – Caminho, Verdade e Vida – põe uma lógica persuasiva e uma
eloquência calorosa. Ataca de frente, com destemor, as frágeis mentiras, as
paixões empolgantes, os vícios da conduta moral, as graves e ardilosas traições
à inteligência. De tudo isso ensina a triunfar com facilidade e segurança.
Prepara, de facto, - para empregar a sua conhecida fórmula – a vitória do Sim
sobre o Não. Ante um mundo caduco, cheio de mitos decrépitos e de truísmos
ocos, é a demonstração luminosa da perene juventude da Ortodoxia, da eficiência
do dogmatismo fundado na Revelação – contra as várias espécies de racionalismo,
de evolucionismo, de cepticismo, de materialismo concebidas pela impotente
vaidade dos homens.
A
Verdade que serve, com fervor de paladino, está acima do espaço como do tempo.
Mostra-se, em qualquer momento da História, sempre válida – e onde quer que
soe, em algum canto da Terra, nós a saudamos e nela encontramos a luz na
tormenta e a esperança na batalha sem fim.
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Aqui
está um livro que Linares Rivas poderia dizer “escrito con la sangre del alma”... Plínio Salgado compreendeu que
um relato da Vida de Jesus tinha que ser vivido, sentido – ainda mais: sofrido. Dir-se-á, por vezes, ao longo
dos seus capítulos que tão de perto acompanham os passos de Cristo na Terra,
ter o escritor dispendido um esforço para em si mesmo renovar a experiência
dessas remotas jornadas, gloriosas e dolorosas. “Não fiz aqui obra de erudição
ou de exegese. Estas narrativas são o espelho de um sentimento que vive em mim
e tudo explica em mim”. Vê-se perfeitamente como Plínio obedeceu tão profundo
sentimento. A comoção, a exaltação com que escreve tornam a sua Vida de Jesus uma evocação diferente das
outras, um livro único acerca de um
momento único da História do Mundo.
Não
se esqueceu, evidentemente, de traçar o quadro da época; fê-lo até com
extraordinário vigor. Mas, para além das circunstâncias do meio e do tempo,
soube ressuscitar, ante nós, a figura sempre viva e próxima de Jesus de Nazaré.
De certo quis assim prestar alto serviço espiritual. No prefácio, encontro
estas linhas elucidativas: - “As paixões e loucuras dos homens continuam as
mesmas e a necessidade de Cristo é sempre a mesma.” Hoje, como nunca, na
paisagem devastada – a necessidade de Cristo avoluma-se, cresce ainda... Não há
só a batalha dos exércitos; há também a decisiva batalha das ideias, dos
conceitos de Deus, do Homem e da Vida. Conforme os que venceram, tomará a
Civilização um rumo de suicídio ou de convalescença...
Bem
haja Plínio Salgado por nos oferecer, nesta hora, a palavra cristã da Verdade,
do Amor e da Paz. O seu livro é, por isso, - sem falar já nos méritos
propriamente literários – um grande livro. Numa crise de inquietação mórbida e
febril como a que hoje consome a maioria dos homens, recorda as forças que tudo
superam e as claridades que iluminam o caminho. Grande livro, por não ser, como
tantos, apenas estéril e angustioso rol de perguntas; por ser antes fecundo
manancial de respostas!
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Pode-se
dizer que nesta há três protagonistas de desigual estatura.
Antes
de nenhum, evidentemente, Cristo, Homem e Deus, a quem Plínio Salgado nada tira
da humanidade, e nada fez perder também da sua divindade. A vida de Jesus é
descrita como a de um homem pertencente a uma sociedade e uma época; mas cada
um de seus actos e dos incidentes que o rodeiam possue estranho, misterioso
prestígio. Entre os homens passa, de facto, o sopro do Alto – ergue-se a
Presença inconfundível e inefável. Ouça-se um trecho expressivo, que restitue,
ao mesmo tempo, o sabor da gente e da paisagem nazarenas e aquilo que, em Cristo,
ultrapassa uma e outra:
- “Como
era boa, e simples, e sem inquietações torturantes aquela vida com Jesus, sobre
os barcos, abrindo as velas ao vento na superfície tranqüilo do lago de
Genezaré! O sol brilhava sobre as montanhas azuis; as frondes verdes
agitavam-se mansamente, emergindo nas ribanceiras; aves cortavam o firmamento
translúcido. Quantas vezes, deixando os barcos, o Mestre e os discípulos
galgavam a encosta das montanhas, em cujo cimo Jesus gostava de orar! Lá em
baixo, ondulavam as searas cor de ouro, subia docemente o fumo dos casais; nas
abas das colinas cantavam pastores, pastoreando os rebanhos... A grande lua
encontrava os Treze, caminhando pelas estradas brancas; a túnica do Mestre
alvejava na frente, e o luar brilhava nos seus cabelos. Tinham assim jornadeado,
por aldeias e cidades, onde as multidões se aglomeravam a ouvir a palavra
divina e a trazer paralíticos, cegos e surdos, que se punham a andar, a ver e a
ouvir, bendizendo o jóvem profeta de Israel”.
Cristo
é o primeiro protagonista do livro. No ambiente corrupto do Império Romano, em
que todos os vícios e todos os desvarios se conjugam para levantar na História
um grito monstruoso de orgulho materialista – lança Jesus de Nazaré a sua
revolução de amor, de justiça, de restauração do homem, de amparo aos humildes,
de luta sem tréguas contra os tiranos. Revolução que ràpidamente alastra, como incêndio
soprado por um vento de cima. Mas atrái sobre o doce Profeta israelita a ira
crescente dos poderosos e acaba por tecer à sua volta uma conjura fatal, cujo
epílogo será a horrenda jornada do Calvário.
Essa
conjura nos leva a falar de outro protagonista do livro: o Homem, na inumerável
multiplicidade das suas máscaras, das suas reacções, dos seus destinos diversos
– mas na unidade substancial da sua frágil argila pecadora. Em frente de Deus
feito Homem, a pobre humanidade vulgar não acerta com o rumo. Seguem uns o
Mestre; outros, invejam-nO e combatem-nO; outros caluniam-nO e atraiçoam-nO;
todos, por fim, O crucificam. Jesus não se surpreende nem se indigna. Como diz
Plínio Salgado, “bem conhecia e bem conhece o barro humano; bem sabia e bem
sabe dos conflitos desesperadores entre a nossa carne e o nosso espírito;
estava certo, como está certo, de que somos todos falíveis, todos susceptíveis
de cair muitas vezes, depois de nos havermos levantado; que o homem não pode
confiar no homem e que ninguém pode basear a própria virtude na própria
invulnerabilidade”. As contradições humanas são-lhe familiares: - “Coragem e
cobardia, verdade e mentira, desprendimento e ambição, caridade e egoismo, fé e
descrença, labor e preguiça, pureza e luxúria, sobriedade e gula, paciência e
desespero, amor e ódio, afirmação e negação, em suma; o Espírito e a Carne. O
Espírito é leve; o Corpo é pesado. O Espírito aspira ao alto, o Corpo tende
para a terra. O Espírito respira a misteriosa atmosfera do Infinito; o Corpo
satisfaz-se com o ar cá de baixo. E justamente o fim maior do Nazareno é
estabelecer a aliança do Corpo com o Espírito”.
Terceiro
protagonista do livro: o próprio Autor. A cada momento, além de narrar os
factos, com extrema fidelidade aos textos evangélicos – comenta e julga. Das
luminosas palavras de Jesus vêmo-lo constantemente extrair ensinamentos novos –
alguns de especial aplicação aos males do nosso tempo. A sua intervenção, por
isso, longe de ser pesada ou indiscreta, converte-se em preciosa ajuda para bem
colhermos tudo o que para nós havia, e continua a haver, no exemplo e na lição
de Cristo.
Sirvam
de eloquente amostra os desenvolvimentos tão oportunos e tão justos acerca do velho motivo, sempre
actualíssimo, das relações entre Cristo e César:
- “As
palavras de Jesus dirigem-se a todos os séculos sempre que este problema se
propuser: os limites do Estado, a sua área e profundidade de acção, a natureza
de seu governo.
A
missão do Estado não é a de Cristo, cujo reino não é deste mundo”; porque o
reino do Estado é exactamente, e sòmente, “deste mundo”. Sendo o reino de
César, ou do Estado, deste mundo, isso não significa que César, ou o Estado, se
desinteressem do reino de Cristo, porque o reino de Cristo é para os homens, e
César tem deveres espirituais como homem, como os tem na qualidade de chefe de
homens.
Os
direitos de César, nos limites do seu império, são exclusivos, e tão exclusivos
que o próprio César os reconhece e neles não interfere. É claro que César não
deverá ultrapassar as fronteiras de seu Império. Quais são essas fronteiras? As
do respeito à personalidade humana e a tudo o que dela se origina, pois tais
coisas já pertencem ao reino de Cristo. Jámais César deverá penetrar os umbrais
da consciência dos seus dirigidos, como estes jamais deverão transpor os
arcanos da consciência de César, pois no fundo da consciência o homem pertence
exclusivamente a Deus. César não poderá plasmar a consciência dos seus
dirigidos conforme seus caprichos, como também seus dirigidos não poderão plasmar
a consciência de César, porquanto César é humano, simples cidadão do Reino de
Deus, e só ele deverá saber a maneira de melhor cumprir seus deveres de
cidadão.
O
Povo não pode ser uma criação de César, nem César uma criação do Povo. E toda a
vez que César quer criar o Povo, fabrica um monstro; e toda a vez que o Povo quer
criar um César, fabrica um Anti-Cristo.
César
e Cristo não são antíteses um do outro. Para que César viva não é necessário
que Cristo morra; e para que Cristo impere não é preciso que César seja
eliminado.
A
frase de Jesus é a regra da harmonia perfeita: “a César o que é de César, a
Deus o que é de Deus”.
Li
até hoje algumas Vidas de Jesus.
Lembro, entre as mais antigas, a venenosa obra de Renan; entre as mais
recentes, o forte e belo livro de Papini, ou o de Mauriac, cheio de claridades
dramáticas. Nenhuma tanto me impressionou como esta – talvez por em nenhuma ter
encontrado identificação tão nítida entre o escritor e o tema. A linguagem de
Plínio Salgado aparenta-se à dos próprios Evangelistas: traduz a mesma fé, o
mesmo alvoroço espiritual, a mesma vocação missionária.
No
final estamos longe de assistir a um epílogo, embora seja o glorioso epílogo da
Ascensão. Assistimos, sim, a um começo, a um ponto de partida. Terminada a Sua trajectória na Terra, cumprida a
Sua missão, nem por isso Cristo deixa de estar ao nosso lado. Pelo contrário: é
agora, depois de termos visto desaparecer a Sua transitória forma humana, que O
sentimos presente como nunca.
Eis
em que estado de espírito se fecha o livro de Plínio Salgado – que se prolonga
muito para além da simples leitura e ficará a viver em nós por largo tempo...
6
“Quanto
mais Dor, mais Amor!” – exclamou, um dia, um grande filósofo e um grande santo.
É na hora em que a Dor se torna mais amarga, mais pungente, mais devastadora –
que se devem lançar à terra as sementeiras do Amor prodigioso e misericordioso.
Desse Amor que tudo cobre, tudo salva e tudo vence fala o Autor da Vida de Jesus, no pequeno volume
complementar a que deu o título de A Imagem
daquela noite.
Nele se reúnem alguns ensaios e alegorias em
que Plínio Salgado continua a ser infatigável pregoeiro da Verdade. Estas
páginas são também escritas ao seu serviço – e resolvem-se num insistente apêlo.
Pobres
dos que fecharem os olhos para não verem e cerrarem os ouvidos para não
ouvirem!
A Imagem daquela noite – é,
ainda, a Imagem de Cristo. De Cristo crucificado. Do Homem-Deus – vítima dos
que não souberam compreendê-lO e merecê-lO e miseràvelmente O imolaram entre os
seus ódios, os seus crimes, as suas blasfémias. Em redor, agitam-se os
desvairados remorsos da turba assassina, os nocturnos pavores dos que
principiam a adivinhar, na treva densa, sinais de expiação – e, também, a mágua
dos que O deploram e O recordam e, pelo contrário, sabem que, por detrás
das espessuras da noite, abrirá a
madrugada da Ressureição.
Não
se trata, apenas, da evocação de um lance decisivo da História Universal.
Plínio Salgado faz-nos reviver o tremendo quadro para nos colocar diante das
perspectivas imutáveis que regem, hoje como então, os nossos destinos. E não
tarda a formular assim a lição do Calvário, na sua perene actualidade:
- “O
Cristo não veio ao mundo para ser apenas tolerado mercê de uma liberdade que se
concede igualmente aos falsos profetas. Veio para ser ou rejeitado, ou aceito e
proclamado. Não nos indicou terceira forma além da treva e da Luz. Sabem disso
os que ardem na insónia daquela primeira noite do crime, uns vendo a própria
condenação e outros a salvação na imagem do Filho do Homem a agonizar no seu
madeiro.
Visão
de morte e de vida, ela atravessará as idades, ressaltando nas esculturas ou
estampando-se nos retábulos, à luz dúbia dos vitrais dos templos, à penumbra
dos mosteiros, ou recortando-se nas paredes nuas das celas, dos hospitais, dos
cárceres, ou coroada de sol, ou batida de invernia, nos átrios das ermidas
solitárias e na moldura de ciprestes das necrópoles.
Mas
estará mais fortemente esculpida, por todo o sempre, na consciência dos homens!
O
Cristo Crucificado não sairá mais do mundo. Será inútil fugir d’Ele,
escondendo-se no agnosticismo de Pilatos, na ironia de Herodes ou na
impenitência do Sinédrio. Ignorá-Lo é impossível. Tentar esquecê-Lo é esforço
vão”.
Um
dos mais belos trechos, o “Menino e o Homem”, convida-nos a uma espécie de
ressurgimento interior, isto é, a descobrir outra vez as puras nascentes da
graça divina – claras e frescas, tais quais em nós fluíram nas jornadas iniciais
da Infância. Do que os homens sofrem, acima de tudo, é da perda do Estado de Graça – e da irreparável
nostalgia por ele deixada em cada alma. Mostra-lhes o escritor, como supremo
objetivo, a reconquista dessa plenitude, sem a qual não poderão encontrar o remédio
para as suas amarguras, as suas ansiedades e os seus problemas.
Ante
a imagem daquela tenebrosa noite do Gólgota, Plínio Salgado ilumina, com seu
verbo de fogo, os rumos promissores do Novo Dia!
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