Tradição e
hispanidade em Gilberto Freyre[i]
Por Victor Emanuel
Vilela Barbuy
Nascido no Recife em 15 de março de 1900, sendo
filho do Sr. Dr. Alfredo Freyre e de D. Francisca de Mello Freyre, Gilberto
Freyre estudou no Colégio Americano Gilreath (atual Colégio Americano Batista),
de que seu pai, Juiz de Direito e futuro Professor Catedrático de Economia
Política da Faculdade de Direito do Recife, fora, em 1905, um dos fundadores,
ao lado de missionários batistas norte-americanos, e do qual era, ainda, diretor
e professor de diversas disciplinas.
Em
1914, já havendo lido as principais obras de autores como José de Alencar,
Machado de Assis, Gonçalves Dias, Castro Alves, Camões, Virgílio, Júlio César,
Victor Hugo, Emerson e Milton, assim como alguns dos dramas de Shakespeare e sendo
ainda aluno do curso secundário do Colégio Americano Gilreath, Gilberto Freyre,
que aprendera latim com o próprio pai, naquela instituição, ali já lecionava o
idioma de Ovídio e Horácio, ao mesmo tempo em que se tornava redator-chefe do
jornal do colégio, intitulado O Lábaro.
Três anos mais tarde, e depois de haver
lido a Bíblia, assim como as obras de Cervantes, Eça de Queiroz, Alexandre
Herculano, Oliveira Martins, Molière, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Oliveira
Lima, dentre outros autores d’aquém e d’além mar, incluindo entre estes últimos
pensadores como Nietzsche, Spencer e Comte, o então futuro autor de Casa-grande e senzala se formou Bacharel
em Ciências e Letras pelo Colégio Americano Gilreath, sendo o orador da turma,
cujo paraninfo foi o historiador Oliveira Lima, de quem logo tornar-se-ia
grande amigo. No discurso então proferido, e que seria publicado no Diário de Pernambuco e também em folheto
da tipografia daquele colégio, sendo posteriormente transcrito no livro Região e Tradição, cuja primeira edição
data de 1941, percebemos um forte sentimento patriótico, nacionalista,
tradicionalista e regionalista, sendo tal regionalismo, chamado orgânico por
José Lins do Rego,[1] um
regionalismo equilibrado e construtivo, plenamente compatível com aquele
nacionalismo igualmente ponderado e edificador e, assim como ele, tendente ao
universalismo.
Em tal discurso, intitulado Adeus ao colégio, revelando ideias assaz
semelhantes àquelas que seriam defendidas, nos anos seguintes, por Oliveira
Vianna, Freyre criticou duramente o ideologismo abstrato das elites dirigentes
brasileiras, que não é senão a “política silogística” denunciada por Nabuco[2]
e o “idealismo utópico” sobre o qual discorreria o autor de Instituições políticas brasileiras e de Populações meridionais do Brasil em
obras como O idealismo da Constituição (1927, com segunda edição, revista e bastante aumentada, em 1939). Assim,
proclamou o então futuro autor de Ordem e
Progresso que “não é com palavras sutis e fórmulas livrescas que se faz uma
nação grande e forte”, devendo “servir de dura lição”, às “terras de
ideólogos”, o “triste fim de Bizâncio”,[3]
e que “verdadeira praga de gafanhotos têm sido para o Brasil essas centenas de
bacharéis filosofantes e palreiros, arvorados em dirigentes”,[4]
lamentando, contudo, que tal “praga” fosse “estùpidamente” combatida com um
discurso de cunho utilitarista.[5]
Destarte, sustentou ele que não devemos ser “meros ideológos nem simples
utilitários, mas idealistas práticos”, o que, em nosso sentir, equivale a dizer
que temos o dever de ser adeptos daquilo a que Oliveira Vianna denominaria
“idealismo orgânico”, idealismo este que se forma tão somente de realidade, se
apoia tão somente na experiência e se orienta tão somente pela observação do
povo e do meio,[6] afirmando, ainda,
ser “tempo do Brasil desapegar-se das fórmulas vagas, procurando ver e observar
os seus problemas em vez de ater-se ao que está escrito nos livros
estrangeiros” e que “o Brasil quer homens”, quer “líderes de cultura e ao mesmo
tempo capazes de ação”.[7]
Ainda
no ano de 1917, Gilberto Freyre se tornou protestante batista, o que desagradou
à sua mãe, que era católica, enquanto o pai,
a despeito de professor de Latim Eclesiástico, Filosofia da Religião
Cristã e Leitura Expressiva da Bíblia no Seminário do Norte, atual Seminário
Teológico Batista do Norte do Brasil,[8]
localizado lá mesmo no Recife, era, segundo o próprio filho, teísta e
espiritualista cristão sem filiação religiosa, ainda que sempre admirador da
Igreja Católica Apostólica Romana, sendo, ademais, assíduo leitor, em latim,
das obras dos Doutores da Igreja, dentre os quais Santo Agostinho gozava de sua
predileção.[9]
Provavelmente por influência paterna, leu, por essa época, Gilberto Freyre,
dentre outros autores, a exemplo de Darwin, Tolstoi, William James, Bergson,
Taine e Renan, Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho, São Francisco de Assis,
São Francisco de Sales, São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, Padre Antônio
Vieira e Padre Manuel Bernardes.
No ano seguinte, partiu o futuro
autor de Sobrados e mucambos para os
Estados Unidos da América, onde se matriculou na Universidade de Baylor,
instituição batista localizada em Waco, no Texas, e iniciou sua colaboração no Diário de Pernambuco, com a série de
cartas Da outra América. Em 1920,
formado Bacharel em Artes pela Universidade de Baylor e já havendo abandonado o
protestantismo, seguiu para Nova Iorque, onde ingressou na Universidade de
Colúmbia, na qual conquistou, em 1922, o grau de M.A. (Magister Artium ou Magister
of Arts) com a tese intitulada Social
life in Brazil in the middle of the 19th Century, que, publicada em
Baltimore pela prestigiosa Hispanic
American Historical Review, mereceu elogios de professores como Oliveira
Lima e Henry Louis Mencken. Neste último ano, viajou para a Europa, onde se
demorou até 1923, visitando a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Bélgica, a
Espanha e Portugal, havendo tido contato, na França, com “movimentos
surpreendentes pela sua mistura de defesa de tradição, no caso a monárquica, e
de renovação”, por meio daquilo a que ele denomina “um novo e revolucionário
federalismo”, como a Action Française,[10]
já havendo então lido a obra de Charles Maurras, principal vulto deste
movimento cívico-político patriótico, nacionalista, tradicionalista e
monárquico francês, que muito influiu na obra do jovem Gilberto Freyre, particularmente
nos conceitos de Tradição e de Regionalismo.
Foi,
porém, em Portugal que Gilberto Freyre mais se demorou, ali tendo contato com
diversos intelectuais, alguns deles ligados ao grupo republicano da chamada
Seara Nova, se configurando, no dizer de Freyre, na “‘ala dos namorados’ da
democracia livre pensadora de Portugal”, e outros “’Integralistas’, isto é,
“monárquicos ‘d’avant garde’”. Havia entre os primeiros, segundo o autor, “indivíduos
de notável talento”, a exemplo de António Sérgio e Câmara Reys, mas “só um
obsevador desequilibrado pela mais rasgada parcialidade de sentimento negaria à
ala oposta, aos antidemocratas, o encarnarem, neste momento, a melhor
inteligência e a maior bravura de ação portuguesas”. Assim, prossegue o então
jovem colunista recifense, “os Srs. Fidelino de Figueiredo, Conde de Monsaraz,
Antônio Sardinha e Afonso Lopes Vieira bastariam, isolados, para dar ao grupo
antiliberal sumo prestígio, sob todos os pontos de vista”.[11]
No
entender de Freyre, que voltou para o Brasil fortemente influenciado pelas
ideias do Integralismo Lusitano, movimento de cujo principal doutrinador e
líder, António Sardinha, se fizera mesmo amigo, ainda que o tendo conhecido
apenas por meio de cartas, “o movimento antiliberal português, longe de ser
puro esprit de minorité, é um esforço
consciente de reintegração nacional”, de “reintegração do país no seu caráter e
nas suas tradições, desfiguradas como por uma espessa camada de cem anos de
constitucionalismo acaciano e, ultimamente, de delírio demagógico”. Destarte,
partindo do pressuposto de que a República estava, em Portugal, fazendo tábula
rasa da Tradição, querendo que o povo olvidasse “o antigo regime”, como notara
Oliveira Lima, em sua primeira correspondência de Lisboa ao jornal portenho La Prensa, salienta Freyre que contra
isto se insurgia “a inteligência crítica das gerações mais novas”,
especialmente dos “chamados integralistas”.
“Querem o regresso absoluto ao passado?”, indaga nosso autor. “Muito ao
contrário, responde voz autorizada do grupo; pedimos à experiência do que foi as normas seguras do que deve ser”.[12]
Isto
posto, cumpre assinalar que o Integralismo Lusitano, cujas ideias eram, no
dizer do republicano, apologista da maçonaria e, como tal, insuspeito poeta
Fernando Pessoa, “as únicas com sistema e coerência”[13]
no Portugal de então, difere do Integralismo Brasileiro mais tarde surgido pelo
fato deste último
não ser católico-confessional e não reivindicar, no Brasil, a restauração monárquica,
reunindo tanto monarquistas quanto republicanos, assim como tanto católicos
quanto membros de outras confissões religiosas, no que, aliás, estava
plenamente de acordo com a posição do Papa Pio XI, que, na Encíclica Caritate Christi Compulsi, de 1932, pregou
a formação de uma frente ampla espiritualista, que deveria unir, no combate sem
tréguas ao materialismo, não apenas católicos e cristãos em geral, mas todos
aqueles que fizessem da crença em Deus a base de toda a ordem social.[14] A despeito, porém, de
tais diferenças, sempre houve profunda admiração dos principais vultos do
Integralismo Lusitano pelo Integralismo Brasileiro e vice-versa, havendo, por
exemplo, Hipólito Raposo, um dos mais importantes líderes e doutrinadores do
Integralismo Lusitano, se referido a Plínio Salgado, principal líder e
doutrinador do Integralismo Brasileiro, como “o mais eloqüente intérprete da Brasilidade”,[15]
enquanto Gustavo Barroso, segundo maior doutrinador e líder do Integralismo
Brasileiro, se referiu a António Sardinha, já falecido quando do surgimento do
Integralismo d’aquém mar, como um “grande mestre”.[16]
Quanto a Gilberto Freyre, se, por um lado,
esteve este assaz longe de admirar o Integralismo Brasileiro da mesma forma que
um dia admirara o Integralismo Lusitano, por outro, sublinhou, no opúsculo Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira,
o seu caráter antirracista, segundo ele “um dos pontos
simpáticos e essencialmente brasileiros daquele movimento”,[17]
e, na obra Problemas brasileiros de Antropologia, ao falar do
“espírito bandeirante”, ou “bandeirismo”, por ele muito admirado, cita Plínio
Salgado entre os pensadores paulistas que se revelaram expressões não somente
intelectuais como também políticas de “bandeirismo ortodoxo”,[18]
o considerando, ademais, um dos mais eminentes vultos de toda uma grande
“geração de paulistas interessados nos seus valores tradicionais mais
característicos” e que, se entregando “a estudos sérios e profundos de História
ou Sociologia regional”, desenvolveu “esforço inteligente e útil de
conservação, restauração e interpretação dos mesmos valores ou do seu
aproveitamento como motivos original ou particularmente paulistas de arte, de
literatura, de sátira social”, evitando que São Paulo, “por excesso de
‘modernismo’ desdenhoso do passado ou dos valores regionais, se tornasse, sob
os arrojos da industrialização”, que o diferenciavam do restante do Brasil, um
simples “arremedo de ‘progresso americano’ ou de ‘progresso norte-europeu’”.[19]
Ao voltar para o
Brasil, em março daquele ano de 1923, Gilberto Freyre, que, a 22 de abril iniciaria
uma série de artigos numerados publicados no Diário de Pernambuco até 15 de abril de 1925, se destacou como um
dos principais defensores do tradicionalismo político em nosso País, revelando,
nestes e noutros artigos dados à estampa naquele prestigioso jornal recifense e
em outros periódicos, ideias profundamente influenciadas por aquelas de autores
tradicionalistas (por ele neste período sempre evocados) como Joseph De
Maistre, Louis De Bonald, Charles Maurras, Léon Daudet, Maurice Barrès, G. K.
Chesterton (de cuja obra se ufanava de ser um dos pouquíssimos conhecedores no
País), Eduardo Prado, Oliveira Lima, Jackson de Figueiredo, Padre Leonel
Franca, e, sobretudo, António Sardinha (de quem foi, ao lado de Jackson de
Figueiredo, o primeiro grande admirador em terras brasileiras) e outros
intelectuais pertencentes ao Integralismo Lusitano, como Hipólito Raposo,
Afonso Lopes Vieira, Manuel Múrias e o Conde de Monsaraz, ou dele
simpatizantes, a exemplo de Fidelino de Figueiredo.
O jovem tradicionalista pernambucano de que
ora falamos, como Maurras, a despeito de não ser então católico, possuía
profundas “simpatias pela tradição Católica”,[20]
sendo mesmo um “enamorado” da “Igreja de Roma”,[21]
fazendo salientar, em artigo publicado no Diário
de Pernambuco a 06 de setembro de 1925, que “nenhum ensino no Brasil pode
ser honesto – seja público ou privado – que não reconheça a intensidade heróica
da ação católica nos começos da nacionalidade brasileira”,[22]
e afirmando, cheio de júbilo, que “o ritmo da influência Católica no Brasil se
acelera” e que “a força Católica cada dia se acentua em sulcos mais fundos
sobre a fisionomia da nação brasileira”, aparecendo, em nosso País
tipos de “leader”
vigorosos e intensos, que lhe escasseavam melancolicamente, no clero como entre
os leigos. Na mocidade dos Padre Leonel Franca e dos Jackson de Figueiredo
esplendem flamas de uma claridade nova. Nunca o Catolicismo no Brasil se
aproximou tanto como se vai nestes dias aproximando, do espírito de Dom Frei
Vital. Do grande e heróico espírito de Frei Vital.[23]
Apesar de admirador da Action Française, reputando haver “nas
idéias de reação, ou antes de reconstrução de Ch. Maurras certo sentido
universal”, Gilberto Freyre considerava ser preciso não esquecer que tais
ideias “representam a sistematização de um grupo de idéias para aplicação a
determinada situação mórbida: a vida francesa desorganizada pelo liberalismo e
pela centralização”. Repetidamente, prossegue o então jovem articulista do Diário de Pernambuco, Maurras, no
“grande livro que é a Enquête sur La
Monarchie”, “frisa e sublinha este critério particularmente francês do
esforço reconstrutor que sua inteligência dirige e seu fino sentimento de
pátria anima”.[24] Assim,
tendo em vista o nosso caráter e a nossa Tradição, concorda Freyre com seu
amigo e admirador José Lins do Rego, que, em artigo publicado na revista Era Nova, da Paraíba, afirmara serem
António Sardinha e Fidelino de Figueiredo “melhores mestres para o Brasil” do
que os pensadores antiliberais franceses, sustentando, pois, que a aproximação
dos jovens brasileiros já descrentes na liberal-democracia “deve ser antes com
o movimento não sei se diga ‘reacionário’ português, ou hispânico, que com o
francês”, de sorte que “ao nosso esforço de retificação mental e de
reorganização moral e política” aquilo que “primeiramente convém é o critério
hispânico, que nos integre no sentimento hispânico e na tradição
sociologicamente católica”. Daí observar o então futuro autor de O brasileiro entre outros hispanos que,
“caso tivesse autoridade, o que muito recomendaria ao adolescente brasileiro,
tocado pelo desencanto do liberalismo, seria a leitura de Menendez y Pelaio
[sic], de Gama e Castro, de Angel Ganivet, de J. Lúcio de Azevedo, de Fidelino,
de Sardinha”.[25]
O
nosso jovem pensador tradicionalista, regionalista, patriótico e nacionalista,
defensor da sociedade orgânica, da Monarquia Tradicional e das tradições
católicas hispano-luso-brasileiras, e, como tal, adversário das ideias liberais
e comunistas, que reputava contrárias à Tradição Nacional, assim como da
própria República, ou, como dizia ele, do “regime de 89”, que, em seu sentir,
ainda fedia a goma arábica,[26]
sofreu, nesta fase de sua atividade intelectual, antes e acima de qualquer
outra, a influência de António Sardinha. Neste admirava tanto o autor de “uma
poesia cheia de nobreza intelectual” quanto o autor de “notaveis trabalhos de
erudição e revisão histórica” e o doutrinador e homem de ação em torno do qual
“estavam reunidas algumas das melhores forças jovens de Portugal, a
intelligencia do velho paiz, desejosa de o reintegrar na sua tradição, na sua
historia, na sua natureza de povo hispanico”, pertencendo, com efeito, à
revista de cultura nacionalista e monárquica Nação Portuguesa, por ele dirigida e na qual o próprio Freyre
chegara a colaborar, diversos “talentos moços, clarificados pela doutrina
intelligentemente nacionalista do jovem mestre”.[27] Esta
influência se fez sentir sobre diversos aspectos do pensamento freyriano, mas
particularmente sobre suas visões acerca da Tradição e da Hispanidade, termo
que deriva de Hispânia, nome que os antigos cartógrafos davam a toda a
península ora conhecida como Hispânica, ou Ibérica, e, evidentemente, foi muito
mais intensa no período que vai de 1923 a 1926 e que é marcado por aquilo a que,
empregando uma expressão sua, podemos denominar “fervor tradicionalista”,[28]
fervor este que animou não apenas os artigos publicados no Diário de Pernambuco e em outros periódicos, a exemplo da Revista do Norte, também do Recife, da
revista Nação Portuguesa, de Lisboa,
e da Revista do Brasil, de São Paulo,
dirigida por Monteiro Lobato e Paulo Prado, mas também, dentre outras coisas, a
fundação, em 1924, do Centro Regionalista do Nordeste, onde se cogitou, no
dizer de Lins do Rego, “dum nacionalismo de bom gosto como já fora aquele de
Eduardo Prado”;[29] a
publicação, em 1925, do Livro do Nordeste,
obra comemorativa do centenário do Diário
de Pernambuco que reuniu, além de diversos ensaios, dois dos quais de sua
lavra, o célebre poema Evocação do Recife,
de Manuel Bandeira, e, por fim, a realização, em 1926, na capital pernambucana,
do Congresso Regionalista.
A
despeito, contudo, das mudanças que sofreu, nos anos seguintes, o pensamento do
autor de Um brasileiro em terras
portuguesas, a influência que sobre ele exerceu a obra de António Sardinha
não se restringiu à mocidade, estando, com efeito, presente até o final de sua
vida. Tanto que, vinte e oito anos após a morte do autor de A aliança peninsular, no
livro Aventura e rotina, cuja
primeira edição data de 1953, ainda se refere elogiosamente a este “homem de
combate”, em quem “aconteceu o transbordamento em homem de letras de uma
personalidade marcada pelo fervor combativo” ou por uma “maneira pessoal de
reagir contra convenções a seu ver desnacionalizantes ou
desispanizantes do português”, assim como “a favor de tradições, no seu
entender, essenciais à conservação do espírito nacional e do espírito
hispânico, na gente portuguesa”.[30]
Do mesmo modo, ainda como Sardinha, partindo da hispanidade do Mundo Lusíada,
no qual se insere o Brasil, publicou o autor de Nordeste, em 08 de julho de 1961, na revista O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, o artigo intitulado Brasil, nação hispânica no trópico, e, em
1975, lançou o livro O brasileiro entre
os outros hispanos. Destarte, sem dúvida ainda concordava ele em idade
provecta com sua afirmação da mocidade no sentido de que devemos dividir com a
Espanha “o amor que nos prende a Portugal”, país que só deve “ser estudado como
parte da Espanha”,[31]
da Espanha-Madre de que nos fala Sardinha, frase que só causa estranheza
àqueles que não se lembram de que Camões chamou os portugueses "Huma gente
fortissima de Espanha",[32]
da mesma forma que o país a que denominamos Espanha seria incompleto caso “do
seu estudo se isolasse o de Portugal”.[33]
Ainda julgaria, outrossim, que nós outros, “os povos da América hispânica”,
devemos, animados pelo “patriotismo pan-hispânico” - fortalecido, em 1926, pelo
voo transatlântico do Major Ramón Franco, irmão do então futuro Caudilho de
Espanha, a bordo do hidroavião Plus Ultra
- devemos nos aproximar de “nossas pátrias de origem”, isto é, de Espanha e
Portugal, “para que num mais vivo contacto com o seu espírito, entre nós se
fortaleça a personalidade hispânica”.[34]
E, por derradeiro, até o final de sua existência foi o autor de Região e Tradição um ardoroso defensor
da Tradição, sempre insistindo, como Sardinha, no caráter dinâmico desta,[35]
que, segundo o poeta, pensador e homem de ação português, representa a “continuidade no
desenvolvimento”, a “permanência na renovação”,[36]
traduzindo, pois, filosófica e historicamente, “dinamismo e continuidade”.[37]
Considerando, como Sardinha, que a
hispanidade representa “a unidade cultural e social do elevado destino que
Portugal e Castela nobremente conseguiram no Universo, dilatando com a Fé e o
Império o mesmo ideal superior da civilização”,[38]
Gilberto Freyre, para quem “o hispanismo não é para nós, nova gente da América
Hispânica, nenhum melancólico e exagerado culto do passado”, mas “uma força de
vida a nos oferecer o mais belo e o mais congenial dos ritmos para a disciplina
da nossa jovem e dispersa energia”,[39]
palavras estas que podiam bem definir também a Tradição, foi o primeiro grande
cruzado, no Brasil, do hispanismo, assim como em Portugal o foram Fidelino de
Figueiredo e António Sardinha. Isto posto, cumpre salientar que o próprio termo
“hispanidade”, aplicado ao conjunto das nações hispânicas, grupo este, que, na
opinião dos mais autorizados hispanistas de Portugal e de Espanha, inclui também
o Mundo Lusíada, havia então surgido apenas recentemente. Entre nós, da América
Luso-Brasileira, parte da América Hispânica tanto quanto a América de formação
castelhana, podemos indicar, como um dos precursores de tal movimento, Silveira
Martins, que, no Parlamento do Império, afirmou, em 1875, pertencer o
brasileiro à “raça espanhola”,[40]
decerto havendo tomado o termo “raça” em sentido amplo e sobretudo espiritual.
Gilberto Freyre, para quem “um povo só se
mantém pela intolerância no que diz respeito à sua tradição e ao seu
sentimento”, em tal “esfera de valores espirituais a tolerância” não
significando senão “desorientação, suicídio nacional, renúncia da
personalidade”,[41] foi, ademais,
um dos primeiros cruzados do tradicionalismo político no Brasil, havendo sido comparado
por José Lins do Rego, em artigo publicado em Era Nova no mês de setembro de 1924, a Jackson de Figueiredo, sendo
na companhia de ambos os autores,
exemplo de “bom-senso”, segundo o então futuro autor de Menino de engenho, que a nova geração brasileira daquele tempo
estava de “ânimo feito” para “refazer o Brasil”.[42]
Exercendo profunda influência junto aos meios intelectuais recifenses em meados
dos anos 1920, foi ele, de certa forma, um precursor do grupo tradicionalista
que, na década seguinte, teve considerável força na capital pernambucana, ali
editando, entre 1931 e 1940, o jornal Fronteiras,
que, sob o lema “ordem; autoridade; nação”, foi dirigido por Manuel Lubambo e
Vicente do Rego Monteiro, este último – célebre pintor modernista, autor do Manifesto dos artistas do Brazil pró
restauração monarchica, publicado naquele jornal em 1935, e adepto do
Integralismo Brasileiro a partir de meados daquele decênio – amigo de Freyre, a
quem conhecera na Europa, em 1922, e que sobre ele escrevera um ensaio
aparecido na Revista do Brasil em
1923. Já havendo, porém, na década de 1930, o controvertido autor de Casa-grande e senzala, abandonado a
defesa das tradições católicas pátrias e do tradicionalismo político e sofrido
a influência de ideias liberais e também socialistas, o jornal Fronteiras o atacou duramente em diversas
ocasiões, a ele se referindo, por exemplo, na edição de novembro de 1936, como
um “ex-agitador e agora burguês”.[43]
[1] REGO, José Lins do. Prefácio. In FREYRE, Gilberto. Região e Tradição. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 33.
[2] NABUCO, Joaquim. Balmaceda.
São Paulo: Companhia Editora Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
S.A., 1937, p. 15. O autor de O
abolicionismo e de Um estadista do
Império define tal política,
na página citada, como a “pura arte de construção no vácuo”,
tendo, como base, “teses, e não fatos”, como material, “ideias, e não homens”,
como situação, “o mundo, e não o país” e, como habitantes, “as gerações
futuras, e não as atuais”.
[3] FREYRE, Gilberto. Região e Tradição. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 75.
[4] Idem, p. 76.
[5] Idem, loc. cit.
[6] VIANNA,
Oliveira. O idealismo da Constituição. 2ª ed. Aumentada. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1939, pp. 12-13.
[7] FREYRE, Gilberto. Região e Tradição. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 77.
[8]
MESQUITA, A. N. História dos baptistas em
Pernambuco. Recife: Typographia do C. A.. B, 1930, p. 186.
[9] FREYRE, Gilberto. Meu pai. Disponível em: http://bvgf.fgf.org.br/frances/obra/opusculos/meu_pai.htm.
Acesso em 04 de maio de 2013.
[10] FREYRE, Gilberto. Introdução do autor. In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em
jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do
organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira;
introdução do autor. Vol. I. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 35.
[11] Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e
primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio
Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. I. São
Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 277.
[12] Idem, p. 278.
[13] PESSOA, Fernando. Da República (1910-1935). Recolha de
textos: Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de
Joel Serrão. Lisboa: Ática, 1978, p. 354.
[14] PIO XI. Encíclica Caritate Christi
Compulsi. Disponível
(em italiano) em:http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19320503_caritate-christi-compulsi_it.html. Acesso em 04 de maio de 2013.
[15] RAPOSO, Hipólito.
A notável oração do Dr. Hipólito Raposo.
In Uma reportagem histórica (pubicada
originalmente no jornal A Voz, de
Lisboa, a 23 de junho de 1946). In VV.AA. Plínio
Salgado: “in memoriam”. Vol. II. São Paulo: Voz do Oeste/Casa de Plínio
Salgado, 1986, p. 189.
[16] BARROSO, Gustavo. Portugal, semente de impérios. Rio de
Janeiro: Editora Getúlio Costa, s/d (1943), p. 109.
[17] Freyre, Gilberto.
Uma cultura ameaçada: a
luso-brasileira, 2ª ed., Casa do Estudante do Brasil, Rio de
Janeiro, 1942, p. 88.
[18] FREYRE, Gilberto. Problemas brasileiros de Antropologia.
3ª ed. Prefácio de Gonçalves Fernandes. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1962, p. 42.
[19] Idem, p. 72.
[20] Idem. Introdução do autor. In Idem.
Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira
mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de
Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. I. São Paulo:
IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 35.
[21] Idem. Região e Tradição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora,
1968, p. 49.
[22] Idem. Desvio de força (artigo publicado no Diário de Pernambuco a 06 de setembro de 1925). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em
jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do
organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira;
introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 203.
[23] Idem, p. 202.
[24] Idem. Sugestões a um livreiro (artigo publicado no Diário de Pernambuco a 18 de junho de 1925). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em
jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do
organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira;
introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p.175.
[25] Idem p. 176.
[26] Idem. 34 (artigo publicado no Diário
de Pernambuco a 09 de dezembro de 1923). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e
primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio
Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. I. São
Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p.343.
[27] Idem. Antonio Sardinha (artigo originalmente publicado na Revista do Norte, ano I, nº 1, Recife,
1925, pp. 5-6). Disponível em: http://www.angelfire.com/pq/unica/il_gf_antonio_sardinha_por_gilberto.htm.
Acesso em 05 de maio de 2013.
[28] Idem. Rua Larga do Rosário (artigo originalmente publicado no Diário de Pernambuco a 02 de novembro de
1926. In Idem. Tempo de aprendiz: artigos
publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926.
Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira;
introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 246.
[29] REGO, José Lins do. Era Nova, ano V, nº 80, Paraíba, junho
de 1925.
[30] FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem a
procura das constantes portuguesas de caráter e ação. 1ª edição. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1953, p. 114.
[31] Idem. Tierra! (artigo originalmente publicado no Diário de Pernambuco a 29 de janeiro de 1926). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em
jornais na adolescência e primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do
organizador José Antonio Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira;
introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 258.
[32] CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas, Canto I, estrofe XXXI.
[33] FREYRE, Gilberto. Tierra! (artigo originalmente publicado
no Diário de Pernambuco a 29 de
janeiro de 1926). In Idem. Tempo de
aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do
autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello;
prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA;
Brasília: INL, 1979, p. 258.
[34] Idem. Do íntimo sentido de um grande vôo (artigo originalmente publicado
no Diário de Pernambuco a 03 de
fevereiro de 1926). In Idem. Tempo de
aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e primeira mocidade do
autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio Gonsalves de Mello;
prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São Paulo: IBRASA;
Brasília: INL, 1979, p. 262.
[35] Idem. Prefácio do autor à 2ª edição.
In Idem. . Região e Tradição. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968, p. 43.
[36] SARDINHA, António. Ao princípio era o Verbo. 2ª ed. Lisboa:
Editorial Restauração, 1959, p. 10.
[37] Idem. Ao ritmo da ampulheta. 1ª ed. Lisboa: Lumen, 1925, p. XXV. Grifos
em itálico no original.
[38] SARDINHA, António. À lareira de Castela, cit., pp. 12-13.
[39] FREYRE, Gilberto. Do íntimo sentido de um grande vôo (artigo
originalmente publicado no Diário de
Pernambuco a 03 de fevereiro de 1926). In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e
primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio
Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São
Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 263.
[40] MARTINS, Gaspar Silveira. Aparte a
José de Alencar, na sessão da Câmara Geral do Império de 02 de junho de 1875.
In ALENCAR, José de. Discursos
parlamentares de José de Alencar. Obra comemorativa do centenário de morte
de José de Alencar. Apresentação de Marco Maciel. Introdução de Rachel de
Queiroz. Brasília: Câmara dos Deputados, 1977, p. 517.
[41] FREYRE, Gilberto. Artigo numerado 79. In Idem. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e
primeira mocidade do autor: 1918-1926. Nota do organizador José Antonio
Gonsalves de Mello; prefácio de Nilo Pereira; introdução do autor. Vol. II. São
Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979, p. 83.
[42] REGO, José Lins do. Carta de uma geração aos Srs. Gilberto
Freyre e Jackson de Figueiredo. In Era
Nova, ano IV, nº 69, Paraíba, setembro de 1924.
[43] FRONTEIRAS. O Congresso Afro-Brasileiro: uma Organização Puramente Científica.
In Fronteiras, anno V, n. 19, Recife,
novembro de 1936, p. 14.
[i] Comunicação
apresentada a 6 de maio de 2013, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (USP), durante a VIII Semana de Filologia na USP.
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