Wednesday, February 25, 2015

Ribeiro Couto e o Vale do Paraíba (III)*

Ribeiro Couto envergando o fardão da Academia Brasileira de Letras

Por Victor Emanuel Vilela Barbuy

Nas linhas finais da segunda parte do presente ensaio, publicada na última edição deste jornal, observamos que, no ano de 1924, Rui Ribeiro Couto, já então noivo de D. Ana Jacinta Pereira, natural de São Bento do Sapucaí, deixou esta bucólica cidadezinha montanhesa, onde fora Delegado de Polícia, indo para o Município de Cunha, também na região do Vale do Paraíba, onde, entre março e abril daquele ano, igualmente ocupou o cargo de Delegado. Em seguida, conforme igualmente fizemos notar no final da primeira parte deste ensaio, foi o fino poeta de O jardim das confidências e magistral contista de A casa do gato cinzento nomeado Promotor de Justiça em São José do Barreiro, também no Vale do Paraíba.
Ainda conforme assinalamos nas derradeiras linhas da segunda parte deste trabalho, a passagem de Ribeiro Couto pela antiga e pacata cidadezinha de São José do Barreiro, uma das “cidades mortas” valeparaibanas de que nos falou Monteiro Lobato,[i] proporcionou ao autor de Poemetos de ternura e de melancolia, como sublinhou Milton Teixeira, originais acontecimentos, que inspiraram novos poemas, contos e crônicas.[ii] Dentre os poemas, destacamos aqueles que compõem a terceira parte da obra Um homem na multidão, intitulada, com efeito, São José do Barreiro, e também os versos da obra Província, que, embora escritos em Pouso Alto, no interior de Minas Gerais, entre os anos de 1926 e 1928, falam todos do município valeparaibano de São José do Barreiro.
Transcrevemos, no final da segunda parte deste ensaio, alguns trechos da terceira parte de Um homem na multidão, nos quais podemos ver toda a singeleza e a musicalidade da poesia de Ribeiro Couto, singeleza e musicalidade que dele fazem, com efeito, um dos maiores poetas brasileiros.
Pouco depois dos trechos por nós citados na segunda parte do presente trabalho, havendo falado do cantar dos ventos nos bambuais em frente à sua janela, das gargalhadas de joão-de-barro que estridulavam nos “arvoredos da vizinhança”, das negras pobres que conversavam enquanto batiam roupa “nas lajes do ribeirão”, em cujas margens corriam meninos nus, e dos “gansos fanhosos” que se perseguiam “na paisagem queimada de sol”,[iii] assim concluiu Ribeiro Couto seus versos sobre São José do Barreiro:
                                                  VII
                                      Minha casa é pequena e velha./ Na calçada de pedras, em torno dela,/ Viçam matos parasitários./ As janelinhas são quadradas./ Em frente, além de uns terrenos baldios,/ Uma chácara se esconde entre arvoredos./ E atrás é a serra, muralha azul./ Os fundos da igreja são ali perto./ Há repiques de sino ao cair da noite./ As moças cantam rezas, sem o padre,/ Que vem apenas duas vezes por mês./ A rua desemboca no caminho de Areias./ Estalam patas no solo duro:/ Passam caboclos de ar triste,/ Bambos nos cavalinhos trotões.
                                      VIII
                                      Nas ruas arenosas e estreitas/ Os lampiões mortiços adormecem./ A luz elétrica é vermelha e pobre como a do querosene./ Há manchas brancas de muros velhos./ Com massas escuras de arvoredo a emergir dos quintais./ No largo da igreja brincam crianças./ Vêm das estradas, à boca dos campos,/ Alaridos de cachorros nas chácaras./ Debruçado no parapeito da ponte/ Um vulto olha o rio./ A lua reflete-se nas águas.[iv]
Em princípios da década de 1940, publicou Ribeiro Couto, no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, a crônica Negro forro,[v] na qual falou de um velho negro, ex-escravo, por nome de Samuel, a quem conhecera em São José do Barreiro, quando lá ocupava o cargo de Promotor Público, e que aparecera, com o nome de João Nagô, em poema do livro Província que ora transcreveremos:
                                                  JOÂO NAGÔ
Preto velho, tua mão/ Era trêmula, doente,/ E teus pés, pesadamente,/ Se arrastavam pelo chão./ Ia longe o tempo mau:/ Capitães, matos, cafuas/ E umas negras carnes nuas/ A sangrar no bacalhau./ Ao morreres tinhas fé/ Em que Deus te deixaria/ Ir ao Céu no mesmo dia/ Ver a Princesa Isabé.[vi]
Muitos são os poemas de Província que mereceriam ser aqui transcritos, mas, por questão de tempo e de espaço, transcreveremos apenas mais um, que reputamos ser um dos mais simples e belos da aludida obra do ilustre poeta santista:
DOMINGO
O sino repica chamando todos à missa./ A neblina enche todo o vale,/ Cobre os telhados, apaga as árvores./ Os caboclos descem da serra para a cidade/ Em cavalinhos que põem fumaça pelas narinas./ O Largo da Matriz está enfeitado de bambus/ Com fios mortos de bandeirinhas de papel./ Restos carbonizados de fogueiras/ Jazem à toa, entre foguetes caídos./ Ontem foi dia de Santo Antônio./ Passam mulheres para o mercado/ Levando meninos que choramingam/ Porque sujaram a roupa nova.[vii]
Em março de 1925, Ribeiro Couto casou-se com D. Ana Pereira, a Donana do Largo da Matriz de São Bento do Sapucaí, imortalizada, como observamos na segunda parte deste ensaio, no magnífico conto Largo da Matriz, que, publicado em 1940, é, sem dúvida alguma, um dos mais belos e tocantes contos de nosso idioma.
O Largo da Matriz de São José do Barreiro em princípios do século XX

Ainda em 1925, Ribeiro Couto e a esposa se mudaram para o município mineiro de Pouso Alto, na Serra da Mantiqueira, onde o escritor foi Promotor de Justiça até o ano de 1928 e em que, em fins de 1925 ou princípios de 1926, deu, na pequena casa que alugara, ao lado de um ribeirão, um histórico jantar de que participaram, além dele próprio, os poetas Manuel Bandeira, então hospedado em sua residência, e Carlos Drummond de Andrade.
Em 1926, foi publicada a obra Um homem na multidão, que mereceu dois longos e elogiosos estudos de Mário de Andrade, ambos publicados no jornal carioca A Manhã. Este diário, dirigido por Mário Rodrigues, pai do então futuro escritor Nelson Rodrigues, não se confunde com o jornal de mesmo nome, também carioca, fundado em 1941 pelo poeta e ensaísta Cassiano Ricardo, aliás, valeparaibano de São José dos Campos. Foi neste último periódico, de orientação nacionalista, que Ribeiro Couto publicou, no início da década de 1940, suas mais belas crônicas.
No ano de 1927, foram dados à estampa dois volumes de contos de Ribeiro Couto, intitulados O crime do estudante Batista e Baianinha e outras mulheres. Este último volume deu ao autor santista o Prêmio de Contos da Academia Brasileira de Letras e em ambas as obras já se revela o escritor um dos maiores contistas do País e do idioma.
Em 1928, ano da publicação de suas Canções de Amor, entre as quais se encontra, como vimos na primeira parte do presente estudo, a belíssima Canção de Campos do Jordão, partiu Ribeiro Couto para a França em companhia da esposa, uma vez que fora designado para trabalhar como auxiliar no Consulado Geral do Brasil em Marselha, onde tornar-se-ia também Vice-Cônsul Honorário.
Em 1931, foi o escritor transferido para Paris, onde serviu como adido junto ao Consulado Geral do Brasil. Por essa época, foi nomeado Cônsul de terceira classe, ingressando formalmente na carreira diplomática.
Em fins do ano de 1931, quando o escritor residia na capital francesa, foi publicado o romance Cabocla, que teve considerável sucesso tanto em matéria de público quanto em matéria de crítica. Escrita em Marselha no ano anterior, esta obra, segundo o autor “um desabafo de saudade e, talvez, de angústia”,[viii] embora ambientada no interior do Espírito Santo e, em parte, no Rio de Janeiro, está cheia de reminiscências e saudades que o romancista tinha dos tempos vividos na região do Vale do Paraíba.
Em Cabocla, inegavelmente um dos mais belos romances campestres da Literatura Brasileira, Ribeiro Couto, “grande poeta no verso e na prosa”, no dizer de João de Barros,[ix] deu-nos, ainda nas palavras do poeta e publicista português, “um livro que poucos, pouquíssimos escritores nos poderiam dar com igual e tão penetrante e comunicativo fervor:- o romance do ambiente do Brasil rústico, do Brasil tradicional e íntimo, raiz indestrutível do complexo e prodigioso Brasil de hoje e de amanhã”.[x] Noutras palavras, em tal romance o autor atingiu plenamente seu objetivo de dar ao público uma obra que fosse um “espelho” da “terra nacional”,[xi] ou, em outros termos, do Brasil Profundo, Autêntico e Verdadeiro.
Em 1932, Ribeiro Couto retornou ao Brasil, passando a trabalhar no Ministério das Relações Exteriores, no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, e, também na redação do Jornal do Brasil, então dirigido por Barbosa Lima Sobrinho. Havendo trabalhado até o ano de 1935 neste prestigioso órgão de nossa imprensa, do qual fora correspondente no período em que residira na França, ali publicou o autor de Cabocla diversos artigos admiráveis.
Durante os conturbados dias da Revolução Constitucionalista, escreveu Ribeiro Couto um pequeno ensaio intitulado Espírito de São Paulo e publicado no Rio de Janeiro pelo poeta e editor Augusto Frederico Schmidt. Em tal ensaio, demonstrou o escritor e diplomata santista que o Alçamento de 09 de Julho de 1932 não era um levante de natureza separatista e ressaltou que foi São Paulo, “na crônica remota, como nos seus dias do Império e da República, uma afirmação”, sem medo e sem mácula, “de brasilidade inteligente, de vontade construtora, de amor à ordem e à cultura”.[xii] Segundo o homem de letras e diplomata paulista, “o espírito de São Paulo, atento a todas as manifestações da vida nacional, não o arrastará nunca ao isolamento, mas sempre a uma preocupação sempre maior do bem do Brasil,” e a vitalidade da Terra Bandeirante “esteve sempre, estará sempre a serviço do país”. Daí resultar a acusação de separatismo lançada contra São Paulo, quando não de má-fé, de um completo desconhecimento das condições em que São Paulo se desenvolvia havia quatro séculos.[xiii]
Foi durante o tempo em que residiu no Rio de Janeiro, trabalhando no Palácio do Itamaraty e na redação do Jornal do Brasil, que Ribeiro Couto ingressou na Ação Integralista Brasileira, como observamos na segunda parte deste estudo.
Em entrevista concedida, em meados da década de 1930, ao Diário de Notícias, de Lisboa, e parcialmente transcrita por Milton Teixeira em Ribeiro Couto, ainda ausente, o autor de O jardim das confidências proclamou que os integralistas, entre os quais se incluía, queriam “o Brasil integrado na tradição, dentro dos moldes do Império”, combatendo o federalismo de estilo estadunidense, importado em nosso País pela Constituição de 1891. Em seguida, defendeu o Estado Corporativo e a denominada Democracia Orgânica, condenando a liberal-democracia, que, em seu sentir, representaria, em última análise, uma “ditadura de simples manipuladores de forças eleitorais”.[xiv]
Ainda segundo observou o escritor patrício na referida entrevista, os integralistas queriam “estabelecer um clima nacional consciente, fortificar o espírito unitário do país e convencer a Nação de que as soluções integralistas são as únicas capazes de defender os princípios de tradição e o espírito brasileiro, resolvendo, ao mesmo tempo, as questões sociais”.[xv]
Concluiu Ribeiro Couto a referida entrevista proclamando sua profunda admiração por Plínio Salgado, sobre quem, aliás, escreveu, por essa mesma época, um pequeno porém magistral ensaio, intitulado O cavaleiro do Brasil Integral e originalmente publicado no Jornal do Brasil, tendo sido posteriormente transcrito em Plínio Salgado, obra de autoria coletiva lançada em 1936 pela Companhia Editora Panorama, de São Paulo, e, mais recentemente, na revista Sei que vou por aqui!, editada na Capital Paulista por Gumercindo Rocha Dorea. Em tal ensaio, fez o escritor santista uma admirável síntese do pensamento político de Plínio Salgado, a quem se referiu como o “cavaleiro do Brasil Integral” e o “apóstolo” que “desceu das montanhas de São Bento do Sapucaí, a velha cidade colonial que repousa entre verdes lavouras, num píncaro de serra, na Mantiqueira” e, consciente de que o Brasil necessitava “de um vasto movimento revolucionário”, de “uma reconstrução integral orientada por princípios filosóficos e uma exata observação da realidade brasileira”, lançara o Movimento Integralista.[xvi]   
            Ainda no aludido ensaio, declarou Ribeiro Couto sua adesão ao Integralismo, que era, em seu entender, “uma ideia necessária” para o País, ressaltando que os integralistas mobilizavam “as forças do espírito brasileiro” e estavam “com as portas abertas” a todos aqueles que sentiam “a urgência de uma reconstrução total e corajosa”.[xvii]
            Em 1933, deu Ribeiro Couto à estampa as obras poéticas Noroeste e outros poemas do Brasil, de forte inspiração nacionalista, Província, que, como vimos, fala de São José do Barreiro, e Correspondência de família, esta última contendo versos seus e do poeta português Adolfo Casais Monteiro, que, dois anos mais tarde, publicaria, pelas Edições Presença, da cidade do Porto, o breve porém significativo ensaio A poesia de Ribeiro Couto.
            Ainda no ano de 1933, foi publicado, pela editora de Augusto Frederico Schmidt, o volume de contos, ou, talvez, novelas intitulado Clube das esposas enganadas.
            Eleito membro da Academia Brasileira de Letras a 28 de março de 1934, tomou o escritor, a 17 de novembro daquele ano, posse da cadeira número 26 da chamada Casa de Machado de Assis, cujo patrono é Laurindo Rabelo, tendo sido recebido por Laudelino Freire.
            Ainda em 1934, Ribeiro Couto, que, no ano anterior, fora condecorado pelo governo português com o grau de Cavaleiro da Ordem de São Tiago da Espada, foi promovido a Cônsul de segunda classe, sendo lotado em Haia, na Holanda, como Segundo Secretário da Legação Brasileira.
            Também em 1934, foram publicados os livros Conversa inocente, que contém algumas crônicas do escritor santista, e Presença de Santa Teresinha, ensaio sobre esta santa, de quem era Ribeiro Couto devoto, como observamos na segunda parte deste estudo, e sua cidade natal de Lisieux, que o poeta visitara no tempo em que residira na França. Tal livro, que contém belas ilustrações de Portinari, seria mais tarde vertido para o francês e publicado na França, assim como poemas e outras obras do autor, que também teve obras traduzidas para o italiano, o sueco, o húngaro e o servo-croata.
            Nos decidimos a ler Presença de Santa Teresinha, obra que muito nos tocou, depois de havermos lido as belas palavras que a poeta santista Carolina Ramos proferiu sobre tal obra, no memorável discurso de posse na cadeira número 30 da Academia Santista de Letras, cujo patrono é Ribeiro Couto. Muito gostaríamos de citar ao menos algumas dessas inspiradas palavras, mas, infelizmente, não encontramos, em nossa biblioteca, o pequeno volume que, sob o título de Ribeiro Couto: vida e obra, contém algumas das mais lindas páginas já escritas sobre o grande e olvidado poeta da cidade de Brás Cubas.
            Em 1935, foi o escritor e diplomata santista agraciado pelo Papa Pio XI com o grau de Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno. No mesmo ano, foi publicado o livro de viagens Chão de França, que contém a poética e encantatória descrição de algumas das cidades e paisagens daquele país europeu.
            Em 1939, Ribeiro Couto, que perdera a mãe dois anos antes, publicou, em Lisboa, o magnífico Cancioneiro de Dom Afonso, dedicado ao seu grande amigo Afonso Arinos de Mello Franco[xviii] e à esposa deste, Anah.
            No ano seguinte, o autor de Baianinha e outras mulheres, “mestre de contistas”, na justíssima expressão do escritor português Joaquim Paço D’Arcos,[xix] deu a lume seu último volume de contos inéditos, que não é outro senão o já aqui mencionado Largo da Matriz. Tal obra é, em nosso entender, no terreno do conto, a máxima obra de Ribeiro Couto, que, conforme bem fez notar Herman Lima, foi, “com os seus contos de tão intenso lirismo e de tão funda sensibilidade”, profundamente marcados “pelo teor poético”, um autêntico “renovador do conto”, para isto tendo contribuído o fato de “continuar poeta em tudo o que escreveu, prolongando-se nas suas narrações a arte sutil de poeta penumbrista”.[xx]
            Em 1941, foi publicado o segundo e derradeiro romance de Ribeiro Couto, intitulado Prima Belinha e dedicado ao historiador Hélio Vianna. Tal obra, cuja redação fora iniciada em Pouso Alto, Minas Gerais, no ano de 1926, e concluída em Paris no ano de 1931, se ambienta entre o Sul de Minas e o Rio de Janeiro e, escrita dentro do mesmo clima tradicionalista e sadiamente nacionalista de Cabocla, é, como este romance, um autêntico espelho do Brasil Profundo, Tradicional e Verdadeiro.
            Em 1943, foi dado a lume o volume de versos Cancioneiro do ausente, que contém alguns dos mais formosos poemas do autor de Poemetos de ternura e de melancolia. No mesmo ano, o ilustre diplomata patrício, que, em 1941, fora Secretário da Legação do Brasil à Conferência Regional do Prata, em Montevidéu, e, em 1942, fora Delegado à 2ª Conferência Pan-Americana de Cooperação Intelectual, realizada em Havana, Cuba, tornou-se encarregado dos Negócios do Brasil em Lisboa. Nesta época, escreveu a belíssima obra poética Entre mar e rio, que seria publicada em 1952 e que, como escreveu Milton Teixeira, “é um autêntico roteiro poético de Portugal”, no qual o poeta “entrelaça Santos, sua terra natal”, com cidades do antigo Reino de Portugal, “numa única mensagem de amor fraternal”.[xxi]
            Em 1946, deixou Ribeiro Couto o amado Portugal dos antepassados, indo para Genebra, na Suíça, na condição de Cônsul-Geral do Brasil naquela cidade alpina, e, no ano seguinte, seguiu, como Ministro Plenipotenciário, para Belgrado, na Iugoslávia, tendo sido nomeado Embaixador do Brasil naquele país em 1952. Apesar de firmemente contrário à ideologia comunista, tornou-se amigo do Marechal Tito, governante daquele país, como antes, em Portugal, se tornara amigo de Salazar, estadista a quem admirava e com quem possuía, evidentemente, mais afinidades do ponto de vista político e doutrinário.
            Em 1956, foi publicado o volume de crônicas Barro do Município, no qual, dentre outras crônicas, originalmente publicadas no Jornal do Brasil ou em A Manhã e algumas delas já citadas ao longo deste estudo, se encontra a interessante crônica intitulada Província sentimental, em que o escritor fala de uma “província natal independente e própria”, província do espírito, na qual não nascera, mas em que sentira renascer, e que era composta de territórios que ele mesmo juntara “por amor”. Tal província sentimental abrangia as serras da Bocaina e de Cunha, “desde as praias de Parati”, descendo “até o vale do Paraíba, entre Bananal e Taubaté”, subindo pela Mantiqueira e se estendendo “por Minas em fora, entre Paraisópolis e Pouso Alto”.[xxii]
            Em 1958, conquistou o poeta santista, em Paris, pela coletânea de versos por ele mesmo vertida ao francês e intitulada Le jour est long, publicada naquele ano, o Prêmio Internacional de Poesia Les Amitiés Françaises, da Sociedade dos Poetas Franceses.
No ano de 1960, foram publicadas, pela José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, as Poesias reunidas de Ribeiro Couto, saudadas com entusiasmo, dentre outros, por Manuel Bandeira, Augusto Frederico Schmidt e Wilson Martins. Tal obra reúne a maior parte das poesias até então publicadas pelo autor de Um homem na multidão, poeta maior, que, como escreveu Ledo Ivo, “fecundado pela melodiosa lição” de Paul Verlaine, Albert Samain e António Nobre, e “ainda a desse obscuro e fantasmal Marcelo Gama”, soubera “extrair da noite, das solidões estreladas e do silêncio, a sua música pura”, em “plena atmosfera solar e colorida do modernismo”.[xxiii]
Ainda em 1960, foi publicado o livro Sentimento lusitano, que contém diversos ensaios admiráveis, a exemplo de A mensagem do lusíada António Nobre e de Lugares comuns de um admirador brasileiro de Eça de Queiroz.
No ano seguinte, lançou o poeta seu último volume de versos publicado em vida, intitulado Longe e dedicado, como vimos na segunda parte deste estudo, à sua esposa Ana, ou Menina, como a chamava, “junto ao rio Sapucaí, na serra da Mantiqueira”. Deste livro, um dos mais belos, sem dúvida alguma, que saíram da inspirada pena do grande escritor patrício, julgamos interessante evocar, além dos poemas a que nos referimos na segunda parte deste trabalho, o poema Biografia, que fala, dentre outras coisas, dos pinheirais e do bom ar de Campos do Jordão:
BIOGRAFIA
Porto natal, grandes navios de antigamente,/ Ambição de saber do que havia por diante,/ Cismas do menino, planos do adolescente,/ Nada durou mais que um instante./ Depois os pinheirais, o ar bom para o doente,/ A montanha embalando a cadeira de cura/ E enfim de novo o mar no litoral ardente./ Anos de força, andanças da aventura,/ O mundo! E uma canção já com voz diferente,/ O escurecer do céu na tarde que não dura./ Agora a pedra e o nome em três letras. Em breve,/ Chuvas virão. Água do tempo tudo lava./ A inscrição não será mais do que um rasto leve/ E não se saberá o que a pedra lembrava.[xxiv]
Em 1999, foi publicado, postumamente, o último livro poético de Ribeiro Couto, Adeuses, precedido pelo estudo Ribeiro Couto e Afonso Arinos, de Afonso Arinos, filho, prefaciado por Antonio Olinto, e de uma apresentação escrita pelo autor do mencionado estudo. Adeuses se inicia com um belíssimo poema no qual o autor de O jardim das confidências evoca os jardins brumosos, nostálgicos e crepusculares de seus juvenis versos penumbristas e outoniços, observando que neles, além da espessa “névoa simbolista” havia claros “mármores parnasianos”, que “de ninguém estavam à vista”, sob o nevoento “céu de Bruges-a-Morta”.[xxv]
Em 1963, Ribeiro Couto, quase cego, aposentou-se da carreira diplomática, saindo de Belgrado e indo para Paris, onde faleceu a 30 de maio do mesmo ano, no Hospital Lariboisière, vítima de um infarto do miocárdio, longe da cidade de Santos, onde nascera, e da região do Vale do Paraíba, em que sentira renascer. Tempos antes, escrevera o poeta ao escritor e advogado Genésio Pereira Filho, natural de São Bento do Sapucaí e seu sobrinho por afinidade, assim como de Plínio Salgado, e primo em primeiro grau da escritora Benedicta Rezende, mais conhecida pelo pseudônimo de Eugênia Sereno, uma carta em que manifestara o desejo de voltar para o Brasil e passar os últimos dias de sua vida em Campos do Jordão.[xxvi]
Já havendo nos estendido além daquilo que deveríamos, encerramos aqui o presente ensaio em homenagem ao exemplar diplomata e brilhante e criminosamente esquecido poeta, contista, cronista, romancista, ensaísta e jornalista patrício Rui Ribeiro Couto, um dos máximos vultos da Literatura Pátria, e à sua e nossa tão amada região do Vale do Paraíba.


Campos do Jordão, São Bento do Sapucaí e São Paulo, julho-novembro de 2014.




* Artigo originalmente publicado no jornal O Lince, de Aparecida-SP (nova fase, ano 8, número 60, Aparecida-SP, novembro-dezembro de 2014, pp. 5-7.
[i] Cidades mortas: contos e impressões, 1ª edição, São Paulo, Revista do Brasil, 1919.
[ii]Ribeiro Couto, ainda ausente, São Paulo, Editora do Escritor, 1982, p. 126.
[iii] Um homem na multidão, 2ª edição, in Poesias reunidas, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1960, p. 162.
[iv] Idem, pp.163-164.
[v] Negro forro, in Barro do Município, São Paulo, Editora Anhembi Limitada, 1956, pp. 71-79.
[vi] Província, 2ª edição, in Poesias reunidas, cit., p. 213.
[vii] Idem, p. 194.
[viii] Nota à 2ª edição, in Cabocla, 4ª edição, São Paulo, Clube do Livro, 1949, p. 178.
[ix] Prefácio da 3ª edição, in Cabocla, cit., p. 180.
[x] Idem, p. 183.
[xi] Nota à 2ª edição, in Cabocla, cit., loc. cit.
[xii] Espirito de São Paulo, Rio de Janeiro, Schmidt, Editor, 1932, p. 66.
[xiii] Idem, p. 67.
[xiv] Ribeiro Couto, ainda ausente, cit., pp. 258-259.
[xv] Idem, p. 260.
[xvi] O cavaleiro do Brasil Integral, in Sei que vou por aqui!, ano I, n. 2, São Paulo, setembro-dezembro de 2004, p. XVII. Artigo originalmente publicado no Jornal do Brasil a 20/07/1933.
[xvii] Idem, p. XVIII.
[xviii] Sobre a amizade de Ribeiro Couto e Afonso Arinos: Afonso ARINOS, filho, Ribeiro Couto e Afonso Arinos, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1999.
[xix] No senáculo da tábua rasa: Ribeiro Couto, in Vasco MARIZ (coordenador) e Milton TEIXEIRA (organizador), Ribeiro Couto:30 anos de saudade, Santos, Editora da UNICEB, 1994, p. 139.
[xx] Evolução do conto, in Afrânio COUTINHO (direção) e Eduardo de Faria COUTINHO (codireção), A Literatura no Brasil, 7ª edição, São Paulo, Global, 2004 (1ª reimpressão, 2008), volume 6, p. 55.
[xxi] Ribeiro Couto, ainda ausente, cit., p. 336.
[xxii] Província sentimental, in Barro do Município, cit,. pp. 17-18. Crônica originalmente publicada no jornal A Manhã.
[xxiii] O governador da nostalgia, in Ribeiro Couto: 30 anos de saudade, cit., p. 172.
[xxiv] Longe, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1961, p. 37.
[xxv] Adeuses, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1999, p. 239.
[xxvi] Cf. Pedro PAULO FILHO, Genésio Pereira Filho, escritor sambentista, in A Montanha Magnífica (memória sentimental de Campos do Jordão), 2º Volume, São Paulo, O Recado Editora Ltda., 1997, p. 330.

Ribeiro Couto e o Vale do Paraíba (II)*

Ribeiro Couto no início da década de 1920, retratado por Vicente do Rego Monteiro

Por Victor Emanuel Vilela Barbuy

Nas derradeiras linhas da primeira parte do presente ensaio, publicada na última edição deste jornal, escrevemos que a tuberculose levou Ribeiro Couto a se mudar, em 1922, para Campos do Jordão, onde teve, pela primeira vez na vida, contato com o campo, passando seus sonetos a refletir, como observou Milton Teixeira, a paisagem campestre, que deixaria marcante influência no autor de Canções de amor, Cabocla e Largo da Matriz e outras histórias,[i] tanto no verso como na prosa.
Em Campos do Jordão, residiu Ribeiro Couto, entre 1922 e 1923, num chalé na então Rua do Sapo, atual Rua João Rodrigues da Silva, em Vila Abernéssia, onde escreveu, como vimos na primeira parte deste estudo, a segunda parte de seu livro Um homem na multidão, intitulada O chalé na montanha, e também a Canção de Campos do Jordão, inserida na obra Canções de amor, cuja redação foi, aliás, iniciada na chamada “Suíça Brasileira”, em 1922, e concluída em São José do Barreiro, em 1925, embora fosse somente publicada em 1928.[ii]
Transcrevemos, no final da primeira parte do presente ensaio, a Canção de Campos do Jordão, mas não reproduzimos ali nenhum dos poemas de O chalé na montanha. Visando corrigir tal omissão, transcreveremos, a seguir, dois dos mais belos e célebres poemas daquela segunda parte de Um homem na multidão:
                                      Primavera de Campos do Jordão
                                    A primavera cobriu as várzeas, os campos e os morros/ De um verde unânime./ Como o sol fulgura nas folhas novas!/ Nas pereiras ramalhudas e altas/ Apontam pintas vermelhas./ E os pessegueiros, de ramos esguios,/ Sacodem ao vento os pêssegos ácidos/ Que o sol começa a colorir./ Pelo meio-dia como que anoitece./ Nuvens negras, caminhando rápidas,/ Trazem o repentino aguaceiro./ Nos telhados estala a fuzilaria do granizo./ Depois todo o ruído cessa./ No céu úmido insinuam-se, entre nuvens,/ Claridades anunciadoras./ A alegria da vida palpita nas árvores./ E volta o sol a fulgurar nas folhas novas/ Molhadas de chuva.[iii]

                                       O noturno da Vila Abernéssia
                                      A casa deserta adormeceu./ Uma torneira mal fechada, lá dentro,/ Pinga, num ritmo certo, a sua gota sonora./ Esse rumor é o único rumor da vida./ A casa deserta adormeceu/ A luz elétrica tem a claridade lívida/ Das salas de jogo às três da manhã./ Entretanto, alumia uma sala casta/ Cheia dos meus pensamentos melancólicos./ A vida sempre foi amarga para alguns./ Vem da noite fria, na estrada,/ A surdina fanhosa dos insetos tímidos./ Ali embaixo, na vila adormecida,/ Cabeceiam, amortecidas, algumas luzes./ É a pobre vilazinha dos tísicos./ A vida sempre foi amarga para alguns.[iv]
Como ressaltou Pedro Paulo Filho, participou Ribeiro Couto, no tempo em que residiu em Vila Abernéssia, das tertúlias lítero-musicais que se realizavam na Pensão Azul, a mais elegante da vila, e às quais compareciam, além de Ribeiro Couto, os também escritores Monteiro Lobato e Mário de Andrade e a pianista Guiomar Novaes, dentre outros.[v]
Vila Nova, ou Vila Abernéssia, em Campos do Jordão, em foto de 1924

            Em 1923, já praticamente curado da enfermidade que o levara a se mudar para Campos do Jordão, foi Ribeiro Couto nomeado Delegado de Polícia do Município de São Bento do Sapucaí, ao qual, aliás, o atual Município de Campos do Jordão ainda pertencia. Seu triunfo contra a tuberculose se deveu aos bons ares da Serra da Mantiqueira, ao seu viril “espírito de luta”, assinalado por Manuel Bandeira,[vi] que, aliás, o visitou, por esse tempo, em Campos do Jordão, “na casa da triste Rua do Sapo”,[vii] e, provavelmente, também à intercessão de Santa Teresinha de Lisieux, a quem o jovem poeta, contista e jornalista fizera uma promessa, pedindo a cura de seus pulmões. Segundo escreveu Manuel Bandeira, Ribeiro Couto se curou “(é verdade que com pneumotórax) passando noites em claro a jogar poker com uns turcos horríveis em Abernéssia, ou, de revolver em punho, enfrentando, como delegado de polícia, os inimigos da ordem em São Bento do Sapucaí”.[viii]
            Quando Delegado de Polícia em São Bento do Sapucaí, ali conheceu Ribeiro Couto sua futura esposa, bem como o único grande amor de sua vida, a bela D. Ana Jacinta Pereira, que não é senão a Donana do autobiográfico conto Largo da Matriz, enfeixado no livro Largo da Matriz e outras histórias, de 1940.
            Largo da Matriz é, talvez, o mais belo e tocante dos contos de Ribeiro Couto. Narra a história de seu namoro e noivado com D. Ana Pereira em São Bento do Sapucaí, no tempo em que ali era Delegado de Polícia, e também um pouco da história do Capitão Candinho, pai da moça e antigo chefe político do Município, e de Nhá Rosa, pobre e bondosa negra velha, que pertencia à Irmandade de São Benedito e residia numa casinha humilde, de porta e janela, no mesmo Largo da Matriz em que, num casarão térreo de esquina, morava o Capitão Candinho com a família, incluindo Donana. Esta última era “a moça invisível da cidade, que passava os dias fechada em casa, lendo os romances que encomendava às livrarias do Rio” e que “quase por acaso, uma tarde”, foi vista pelo jovem Delegado-escritor, “de relance, toda pálida, de olhos pretos, um ar grave e longínquo, contemplando o morro em frente – como adivinhando atrás, muito além de léguas e léguas de serra, o mar, o mar das evasões e da infinita viagem”.[ix]
            O conto Largo da Matriz termina quando, anos mais tarde, o ex-Delegado de São Bento do Sapucaí e Donana recebem, em Paris, a notícia do falecimento de Nhá Rosa, em cuja canastra foi encontrado o “único tesouro” de sua casinha pobre: “o uniforme da Irmandade de São Benedito, a fita preta e branca da mesma Irmandade, um par de meias novas, borzeguins também novos e uma nota de cinquenta mil réis para as despesas do enterro”. Era este “o produto de todas as economias de Nhá Rosa, aplicadas com um pensamento de decência e devoção”. Teve a bondosa senhora, muito querida em São Bento, um “enterro muito concorrido”.[x]
            Segundo Ribeiro Couto, nas linhas finais de seu conto,
                             A morte de Nhá Rosa era um pedaço de nós mesmos que desaparecia sem remédio.  Parecia que só então o nosso noivado estava findo.
                                       Agora, quando voltássemos a São Bento, não teríamos aquela salinha de terra batida, com a cadeira de palha rustida, o café feito na hora e Nhá Rosa rindo com as gengivas sem dentes.
                                 Assim havia de ser pelo resto da vida. Pouco a pouco, pessoas e coisas morreriam em São Bento.  De cada vez, havíamos de sentir que o mundo nos despojava de uma realidade remota, mas presente, uma realidade misturada ao nosso ser físico e à nossa memória. Não seríamos então como pessoas mortas, nós dois, a caminhar por um mundo sem contatos?
                               No Jardim das Tulherias tudo era êxtase para os olhos. Os palácios de Paris erguiam cúpulas históricas. Os pardais, descendo dos castanheiros, meigos e ágeis, vinham pedir migalhas de pão aos transeuntes, movendo-se pela areia aos pulinhos.
                                      Em torno, Paris oferecia-nos uma realidade urgente, mais rica de aspectos, de ocupações voluptuárias.
                                     Donana e eu seríamos muito felizes se a curiosidade pudesse absorver-nos por completo, sem aquele Largo da Matriz que subsistia no fundo de nós, com Nhá Chiquinha [mãe de Donana], o capitão Candinho, Quitéria [irmã solteira de Donana], Nhá Rosa, o agente do correio, Joana [neta de Nhá Rosa], a igreja, o morro em frente.
                                     Então compreendemos que nosso maior bem seria aquele: carregar por todas as terras e por todos os mares uma obsessão afetiva, protetora fiel da ingenuidade morta.[xi]
            Cumpre ressaltar que o casarão de esquina em que residia D. Ana Pereira fica muito próximo da casa em que nasceu Plínio Salgado, que, aliás, foi casado com uma das filhas do Capitão Cândido Justino Pereira (o Capitão Candinho), Maria Amélia Pereira, que morreu a 21 de julho de 1919, dias após haver dado à luz a única filha de Plínio, que também foi batizada com o nome de Maria Amélia e escreveu uma magistral biografia do pai.[xii] Assim, ao se casar, em 1925, com D. Ana Pereira, tornou-se Ribeiro Couto parente por afinidade de Plínio Salgado, de quem talvez fosse também parente de sangue pela família Esteves, de Portugal, sendo Plínio Esteves Salgado o nome completo do autor de O estrangeiro e Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto o nome completo do autor de Cabocla, ambos netos de imigrantes portugueses que tinham o sobrenome de Esteves.
             Outro conto que se encontra na obra Largo da Matriz e outras histórias e se ambienta em São Bento do Sapucaí é o magnífico O baiano, que se passa durante a Revolução Constitucionalista de 1932, quando São Bento foi um dos baluartes das forças paulistas contra as hostes da ditadura de Getúlio Vargas. O personagem central do conto é um soldado baiano que cai prisioneiro dos soldados constitucionalistas, sendo conduzido por estes até a cadeia, de onde é retirado nu por populares sambentistas, que querem matá-lo. Quando o prisioneiro, porém, diz que não liga que o matem, desde que o matem vestido e não com “as partes de fora”,[xiii] tudo muda, e, como ressaltou Alberto Venancio Filho, o povo de São Bento aclama o baiano “pela sua dignidade e pela sua coragem”,[xiv] num clímax que, na expressão de Vasco Mariz, “comove e exalta os bons sentimentos daquela gente simples da serra”,[xv] sendo tal conto, na opinião de Gilberto Amado, “um documento impressionante de psicologia brasileira”.[xvi]
            No último livro de poesias de Ribeiro Couto, Longe, publicado em 1961 e dedicado à esposa D. Ana Pereira Ribeiro Couto, ou Menina, como a chamava na intimidade, “junto ao rio Sapucaí, na serra da Mantiqueira”,[xvii] há o belo poema Largo da Matriz, que julgamos oportuno transcrever na íntegra:
                                                  Largo da Matriz
                                     O Largo da Matriz, quintais e velhas ruas/ Descendo à várzea, ao rio espraiado e barrento/ Em que brincavam de pescar crianças nuas:/ Cidadezinha, assim me apareceu São Bento./ As janelas do casarão eram as tuas./ Moça escondida, com segredos de convento,/ Bonita como tu não podia haver duas./ Falavam-me de ti, do teu ar cismarento.../ Muitas vezes fiquei a olhar tuas janelas/ Alta noite, vulto esbatido na neblina,/ Amoroso da luz que havia numa delas./ Na torre da Matriz o relógio velava/ Como guarda fiel do casarão da esquina/ Onde tinha que estar o bem que me esperava.[xviii]
Também em Longe encontramos a poesia Recordação de Gonçalves Dias, na qual Ribeiro Couto diz imaginar o poeta da Canção do exílio, como ele, em Paris, olhando o rio Sena e a Catedral de Notre-Dame ao fundo, enquanto o sabiá que sempre ouvia “cantava nas palmeiras de outro mundo”. Via Gonçalves Dias admirando as belezas de Paris, não esquecendo, porém, sua gente e seu chão, bem como o seu Imperador Dom Pedro II, e assim dizia ao poeta maranhense, no final de seu belo poema:
                                   Murmuro, debruçado sobre o Sena,/ Tua canção do exílio e, num instante,/ São Bento do Sapucaí me acena/ A água do rio estranho [o Sena] fica cheia/ De imagens meigas cuja voz distante/ É como um sabiá que em mim gorjeia.[xix]
Nestas citações, podemos ver o quão certo está Plínio Salgado ao afirmar, na homenagem póstuma que fez a Ribeiro Couto, na Câmara dos Deputados, em Brasília, que o autor de Longe, Baianinha e outras mulheres e Cabocla, “uma das mais altas figuras produzidas pela literatura brasileira e um dos valores mais nobres da nossa diplomacia”, além “de tudo quanto foi de notável na literatura pátria, além de tudo quanto significou como homem público da maior latitude e altitude”, era, para ele, “particularmente”, o poeta de sua terra natal, São Bento do Sapucaí,[xx] assim como era também seu irmão:
                                 Éramos irmãos por todos os motivos – irmãos em arte, irmãos em idealismo, porque participou do grande movimento que lancei no Brasil um dia, irmãos pelos gostos estéticos, irmãos por sermos, por assim dizer, da mesma terra, daquela que ele tomou como sua terra adotiva; irmãos por laços de parentesco que nos uniam.[xxi]
O “grande movimento” a que se referiu Plínio Salgado em sua homenagem póstuma a Ribeiro Couto não é senão o Integralismo, movimento que reuniu, aliás, nas palavras de Miguel Reale, “o que havia de mais fino na intelectualidade da época” em que surgiu,[xxii] se constituindo, no dizer de Gerardo Mello Mourão, no “mais fascinante grupo da inteligência do País”.[xxiii]
Em 1924, Ribeiro Couto, já noivo de D. Ana Pereira, deixou São Bento do Sapucaí, se tornando Delegado de Polícia do Município de Cunha, também no Vale do Paraíba, onde permaneceu de março a abril daquele ano, sendo depois nomeado Promotor Público em São José do Barreiro, ainda no Vale do Paraíba.
O Largo da Matriz, em São Bento do Sapucaí, no início do século XX

Como aduziu Milton Teixeira, a passagem de Ribeiro Couto por São José do Barreiro proporcionou ao escritor acontecimentos originais, que inspiraram a feitura de novos poemas, contos e crônicas.[xxiv] Dentre os poemas, podemos destacar aqueles que compõem a terceira parte do livro Um homem na multidão, chamada, aliás, São José do Barreiro, e também os versos de Província, que tratam todos de São José do Barreiro, embora tenham sido escritos em Pouso Alto, no interior de Minas Gerais, entre 1926 e 1928, e publicados em Coimbra, Portugal, pelas Edições Presença, em 1933.
A terceira parte de Um homem na multidão, intitulada, como acabamos de observar, São José do Barreiro, assim principia:
                                         I
                                        A folhagem nova das goiabeiras/ Brilha ao sol, envernizada de verde./ Numa rua qualquer/ Passa um carro de boi, lentamente,/ Com sua lamúria fanhosa e contínua./ No telhado colonial da casa em frente/ Um pássaro pousou e canta./ Das paredes brancas o reboco antigo caiu:/ Paredes grossas de pau a pique,/ Ripas tortas enxadrezadas./ O quintal tem muros de adobe. Por cima aparecem bananeiras./ Uma galinha a passear os pintos ariscos/ Vem catar insetos à minha porta./ Voam moscas na luz nítida.[xxv]
No trecho citado de São José do Barreiro, podemos perceber claramente a simplicidade, a singeleza da poesia de Ribeiro Couto, assinalada por diversos escritores e críticos literários, e que é, justamente, uma das principais causas da beleza de tal poesia,  também marcada pela musicalidade, que, embora mais forte nos poemas dos primeiros livros de versos do autor, particularmente O jardim das confidências e Poemetos de ternura e de melancolia, está presente em todas as suas obras poéticas,[xxvi] sendo importante recordar, aliás, que foi Ribeiro Couto um dos poetas pátrios que teve mais poesias musicadas, havendo, com efeito, compositores como os brasileiros Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Osvaldo Lacerda e Oscar Lorenzo Fernández e o português Armando Leça feito versões musicais de poemas do autor de Província e de Canções de amor. Em São José do Barreiro, confessou o poeta, contista e então futuro romancista de Cabocla e Prima Belinha seu amor às coisas singelas, sendo com tal confissão que fechamos a segunda parte do presente ensaio:
                                    Amo as coisas simples/ Tudo que está em roda de mim/ E existe sem ninguém saber./ A humilde verdade./ Casa pobre.[xxvii]

São José do Barreiro em fins do século XIX ou princípios do século XX


* Artigo originalmente publicado no jornal O Lince, de Aparecida-SP (nova fase, ano 8, número 59, Aparecida-SP, setembro-outubro de 2014, pp. 5-7.
[i] Ribeiro Couto, ainda ausente, São Paulo, Editora do Escritor, 1982, p. 108.
[ii] Idem, p. 135.
[iii]Um homem na multidão, 2ª edição, in Poesias reunidas, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1960, p. 138.
[iv] Idem, p. 156.
[v] Mario de Andrade, poeta do modernismo, in A Montanha Magnífica (memória sentimental de Campos do Jordão), 2º Volume, São Paulo, O Recado Editora Ltda., 1997, p. 159.
[vi] Itinerário de Pasárgada, Rio de Janeiro, Record, 1984, p. 68. Trabalho originalmente publicado em 1954.
[vii] Idem, p. 104.
[viii] Idem, p. 68.
[ix] Largo da Matriz e outras histórias, Rio de Janeiro, Getulio M. Costa, Editor, 1940, p. 14.
[x] Idem, p. 26.
[xi] Idem, pp. 27-28.
[xii] Plínio Salgado, meu pai, São Paulo, Edições GRD, 2001.
[xiii] Largo da Matriz e outras histórias, cit., p. 45.
[xiv] Prefácio, in Ribeiro COUTO, Melhores contos, Seleção de Alberto Venancio Filho, São Paulo, Global, 2002, p. 11.
[xv] O contista, o romancista e o cronista, in Vasco MARIZ (coordenador) e Milton TEIXEIRA (organizador), Ribeiro Couto: 30 anos de saudade, Santos, Editora da UNICEB, 1994, p. 216.
[xvi] Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (29/08/1964). Disponível em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=12293&sid=264. Acesso em 15/08/2014.
[xvii] Longe, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1961, p. 7.
[xviii] Idem, p.67.
[xix] Idem, p. 58.
[xx] Ribeiro Couto (discurso proferido na Câmara dos Deputados na sessão de 31 de maio de 1963), in Discursos parlamentares (Volume 18 – Plínio Salgado), Seleção e introdução de Gumercindo Rocha Dorea, Brasília, Câmara dos Deputados, 1982, p. 749.
[xxi] Idem, p.67.
[xxii] Entrevista concedida ao Jornal da USP.  Disponível em: http://espacoculturalmiguelreale.blogspot.com/2007/08/entrevista-concedida-pelo-prof-reale-ao.html. Acesso em 15/08/2014.
[xxiii] Entrevista concedida ao Diário do Nordeste. Disponível em:
[xxiv] Ribeiro Couto, ainda ausente, p. 126.
[xxv] Um homem na multidão, 2ª edição, in Poesias reunidas, cit., p. 157.
[xxvi] Cumpre ressaltar que o jornalista e crítico literário Rodrigo Melo Franco de Andrade escreveu, após ter lido O jardim das confidências, que “são canções (...) todos os versos do Sr. Ribeiro Couto e é isso decerto o seu principal encanto” (Um poeta novo, in Ribeiro COUTO, Poesia, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1934, p. 211). O texto citado foi originalmente publicado no jornal O Dia, do Rio de Janeiro, a 25 de setembro de 1921, e se encontra transcrito apenas em parte na obra Poesia, que reúne os dois primeiros livros poéticos de Ribeiro Couto (O jardim das confidências e Poemetos de ternura e de melancolia). Dentre outros que assinalaram a musicalidade, aliás, evidente, dos versos de Ribeiro Couto, podemos destacar Mário Rodrigues, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Afrânio Coutinho e Ledo Ivo.
[xxvii] Idem, p. 161.