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Monday, May 08, 2017

Como nasceram as cidades do Brasil*


Em 1939, Plínio Salgado, já então um notável e consagrado escritor, jornalista, pensador, orador e doutrinador político, bem como criador e líder do maior movimento cívico-político-cultural tradicionalista e nacionalista de toda a América Lusíada e de toda a América Hispânica,[1] foi exilado para Portugal, por razões políticas, pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Diversamente dos chamados exilados políticos das décadas de 1960 e 1970, todos eles autoexilados, Plínio Salgado teve de deixar o Brasil por ordem de Vargas, que lhe permitiu, porém, escolher para qual país seguiria. E então, como escreveu o escritor e pensador tradicionalista português Fernando de Aguiar, Plínio Salgado, esse “cavalheiro de nobres ideais e de igual nobreza de sentimentos, forçado ao exílio, procurou Portugal”, escolhendo a Pátria de seus Maiores por saber que nela estaria “em família” e melhor amparado “contra as violências dos homens, nos seus desmandos, a afogarem em onda de sangue e de desvario o mundo, este amarroado e à míngua do bom senso comum”.[2]
Ainda como observou o autor de Gente de casa (Fernando de Aguiar), Portugal, a “Terra de Santa Maria, título de nobreza à Pátria de D. Afonso Henriques em suas virtudes ancestrais”, impõe-se para o retiro de Plínio Salgado, “lugar apropositado para meditação e exaltação cristã”, e, posto que animando a caseira lição da História e da Tradição, “por sentimento e por sangue, também destino legítimo para repouso das canseiras do dia a dia e aperfeiçoamento da alma nas lides políticas”.[3]
Uma vez na pequena-grande Pátria de que nasceu a nossa Pátria, Plínio Salgado, que para ela seguiu em companhia da esposa, D. Carmela Patti Salgado, conheceu-a de norte a sul e nela estudou profundamente o pensamento tradicionalista português e espanhol, proferiu algumas de suas mais belas e importantes conferências, escreveu as suas mais pujantes obras religiosas e foi reconhecido por todos como uma espécie de embaixador cultural do Brasil e pela intelectualidade católica como um dos maiores pensadores católicos de todos os tempos e um verdadeiro apóstolo brasileiro.[4]
Se, ao momento de sua chegada a Portugal, era o nome de Plínio Salgado ali conhecido e admirado por alguns intelectuais de escol, a exemplo do historiador e escritor João Ameal e dos principais líderes do Integralismo Lusitano, “já então admiradores declarados de sua inteligência máscula, conduzida na luminosidade de Espírito cintilante e de esforçado engenho e servida na compreensão de sadia e arejada política”,[5] este, nos anos em que ali viveu, pelos prodígios de seu verbo falado e escrito, tornou-se célebre em toda a Nação Portuguesa. E, como aduziu Fernando de Aguiar, Plínio Salgado, “abençoado por Portugal como filho adoptivo”, foi
aquele brasileiro que, melhor compreendendo as nossas gentes, mais ilustrou o intercâmbio entre as duas Pátrias de língua portuguesa, quem mais rente, e pelo coração, soube segurar, prender e unir, em nossos dias, os nós sagrados que para sempre hão-de vincular, no futuro, o Brasil a Portugal e Portugal ao Brasil.[6]
Durante o discurso de agradecimento à homenagem a ele prestada por um grupo de ilustres portugueses[7] antes de seu retorno ao Brasil, em junho de 1946, Plínio Salgado afirmou que, ao partir do Rio de Janeiro, em 1939, vira a bandeira nacional brasileira a flutuar triunfalmente na Fortaleza de Santa Cruz e que sentira que a auriverde bandeira parecia dizer-lhe:
Vai, porque do outro lado do oceano encontrarás a Pátria da tua Pátria e ali, junto aos monumentos antigos e aos túmulos dos heróis da Raça, adquirirás novas forças de tradicionalidade com que volverás mais rico de seiva nacional, mais vibrante de brasilidade, mais ardente de amor pelo teu Brasil.[8]
Não é necessário dizer que de fato Plínio Salgado adquiriu, em terras portuguesas, novas forças da mais lídima tradicionalidade, com que volveu à Terra de Santa Cruz mais rico de seiva nacional, mais vibrante de Brasilidade e mais ardente de amor pelo Império natal.
Foi em Portugal que o renomado autor de O estrangeiro (Plínio Salgado) concluiu e deu ao Mundo a sua obra-prima, a Vida de Jesus, que o Padre Leonel Franca bem qualificou de “joia de uma literatura.”[9] E dissemos, como Tasso da Silveira, que Plínio Salgado deu ao Mundo a sua Vida de Jesus em razão de que, como salientou o ilustre poeta e ensaísta curitibano (Tasso da Silveira), a Vida de Jesus é uma “obra de significação universal, dado o esplendor com que o tema supremo foi nela realizado”, e é, ainda, uma obra que já alcançou diversas edições em diversos países e diversos idiomas e sobre a qual prestigiosas autoridades, como o mencionado Padre Leonel Franca e D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Cardeal-Patriarca de Lisboa, “disseram coisas definitivas e consagradoras”.[10]
Como ressaltamos algures,[11] por suas obras religiosas,  a exemplo da Vida de Jesus, “coroa luminosa de um grande e silencioso drama”, no dizer do Cardeal Cerejeira,[12] assim como de A aliança do sim e do não, de Primeiro, Cristo!, de O Rei dos reis, de A Tua Cruz, Senhor, de Mensagens ao Mundo Lusíada, de A imagem daquela noite e de São Judas Tadeu e São Simão Cananita, bem podemos considerar Plínio Salgado um dos maiores e mais profundos escritores cristãos de todos os tempos e uma das máximas glórias do pensamento e das letras cristãs do Mundo Lusíada.
Tratando da Vida de Jesus, afirmou Fernando de Aguiar ser esta obra “o livro mais fortemente lusíada deste atormentado século”,[13] e se é verdade que, como salientou o Padre Moreira das Neves, tal obra teve um êxito extraordinário, talvez só ultrapassado, em sua expansão mundial, pela História de Cristo, de Papini,[14] é igualmente verdade  que, como enfatizou José Sebastião da Silva Dias, tal obra, que realmente conseguiu ser a “joia de uma literatura”, teria por mercado o Mundo inteiro, caso houvesse sido escrito em qualquer das grandes línguas europeias.[15]
Consoante escreveu o sacerdote jesuíta, pensador e jornalista italiano Domenico Mondrone, na introdução à primeira edição italiana da Vida de Jesus, transcrita na revista romana La Civiltà Cattolica, não apenas as obras religiosas de Plínio Salgado, mas todos os livros deste “escritor robusto e fecundo” são testemunhos “do ideal cristão, ao qual está dirigida toda a sua vida de indivíduo e de cidadão e no qual se enquadra a sua visão do mundo”.[16] A propósito, como bem frisou o jus-filósofo tomista e pensador tradicionalista espanhol Francisco Elías de Tejada, desde a sua conversão intelectual à Fé Católica, em 1918, o que Plínio Salgado levantou foram duas solidíssimas colunas: Cristo e o Brasil.[17]
Neste mesmo sentido, ao analisar as obras Como nasceram as cidades do Brasil e A imagem daquela noite, João Ameal assim escreveu a respeito do autor da Vida de Jesus:
Plínio Salgado escreve, fala, apostoliza sob a luz perene da obediência a Cristo; os argumentos que emprega, são colhidos nas divinas palavras; as imagens que levanta, são sugeridas pelas divinas lições, os apelos que lança, são o eco dos divinos apelos e todo o seu programa é reimplantar na consciência dos contemporâneos a figura excelsa do Filho de Deus e incitá-los a que O tomem por modelo e saibam voltar ao integral cumprimento da Sua Lei.[18]

  É sobre a obra Como nasceram as cidades do Brasil que hoje falaremos. Escrita em Portugal e publicada em 1946, pela Editorial Ática, de Lisboa, tal obra se destinava, antes de tudo, a mostrar aos brasileiros e aos portugueses, que tão generosamente acolheram o seu autor, a fisionomia de sua terra natal, por meio de páginas que, como enfatizou Gumercindo Rocha Dorea, o tempo não foi ou será capaz de destruir e que demonstram como pode o amor edificar para a eternidade.[19]
A Editorial Ática pertencia ao poeta Luís de Montalvor (nome literário de Luís Filipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos), que a fundara em 1933, e, profundo admirador do pensamento e da obra de Plínio Salgado, já editara a sua Vida de Jesus e A Tua Cruz, Senhor, e publicaria, naquele mesmo ano de 1946, a obra Madrugada do Espírito. Luís de Montalvor, que fundara, em Lisboa, em janeiro daquele ano de 1946, a Livraria Ática, e que faleceria no ano seguinte, com a esposa e o único filho, num desastre automobilístico, iniciara, em 1942, a publicação de diversas obras de Fernando Pessoa e seus heterônimos, sob o título de Obras Completas de Fernando Pessoa, e publicaria, ainda no ano de 1946, as Poesias de Mário de Sá-Carneiro. A propósito, tanto Fernando Pessoa quanto Mário de Sá-Carneiro tinham sido seus companheiros na revista Orpheu, que circulara em 1915 e tivera em Montalvor seu principal idealizador e o seu primeiro diretor, ao lado do poeta e escritor brasileiro Ronald de Carvalho, logo passando, porém, a ter um papel secundário na organização desta revista, marco inicial do Modernismo em Portugal, e sendo substituído em sua direção, juntamente com Ronald de Carvalho, por Pessoa e Sá-Carneiro, no segundo número da mencionada revista, cujo terceiro número, organizado em 1917, somente viria à luz em 1984. Por fim, vale lembrar que fora Montalvor quem proferira o elogio fúnebre de Fernando Pessoa por ocasião do sepultamento do corpo deste, em 2 de dezembro de 1935.
Obra estuante de Fé e de Brasilidade, iniciada, segundo o autor, num dia em que transbordava o seu “afeto pelo Brasil e os Brasileiros”, afeto este que o levou a contar, “na terra dos nossos Maiores”, a história das cidades brasileiras,[20] Como nasceram as cidades do Brasil traz a seguinte dedicatória:
À Nação Portuguesa, em homenagem aos antepassados comuns que construíram a minha Pátria, deram-lhe uma nobre língua e uma gloriosa tradição e animaram-na, por todo o sempre, com a alma religiosa que a integra na família lusíada das cinco partes do mundo e na comunhão universal do Cristianismo ofereço este livro como recordação de minha permanência na sua linda terra e no meio da sua hospitaleira e carinhosa gente.[21]
Em artigo a respeito de Como nasceram as cidades do Brasil, publicado no jornal Idade Nova, do Rio de Janeiro, em 27 de outubro de 1946, Tasso da Silveira ponderou que a leitura de tal obra era urgentíssima entre nós, sendo mister dizer aos brasileiros que todos eles deviam ler este livro o quanto antes.[22]
Isto porque, como aduziu o autor de Puro Canto e de Gil Vicente e outros estudos portugueses (Tasso da Silveira), estávamos então atravessando “uma crise de enorme inconfiança nos destinos do Brasil”. Assim, segundo Tasso da Silveira, o secreto desalento que, em seu sentir, lavrava em milhares de almas em nosso País, nos roubava “a energia indispensável à luta viva” daquela hora. Os brasileiros, no entender do poeta do Cântico ao Cristo do Corcovado (Tasso da Silveira), precisavam reviver os motivos que tinham para despertar o Brasil de seu sono e tais motivos são “eficacissimamente evocados no volume de história autêntica e de autêntica poesia” que é Como nasceram as cidades do Brasil.[23]
Conscientes de que o Brasil da hora presente atravessa uma crise de inconfiança em si mesmo e em seu porvir de proporções muito maiores que aquela que atravessava em meados da década de 1940, concordamos com Tasso da Silveira, quando este observa que, nas páginas de Como nasceram as cidades do Brasil, “oferece-nos Plínio Salgado o exato antídoto ao fundo envenenamento de que somos vítimas”. Tal antídoto vem a ser a História de como se formou o Brasil, a rememoração dos grandes feitos de que fomos capazes no passado, dos tremendos óbices que vencemos, da resistência que, no pretérito, soubemos opor às energias adversas, “e que demonstram, em nós, virtualidades de grande povo”.[24] Como sublinhou o autor de Tendências do pensamento contemporâneo e de 30 espíritos-fontes (Tasso da Silveira):
Quem sabe como o Brasil se formou não desanima do Brasil. Digam-no os nossos genuínos historiadores. Digam-no os evocadores da epopeia bandeirante, da luta com os holandeses, da conquista do Brasil às terríveis endemias. Estes, os que sabem como o Brasil se formou, não se mostram pessimistas. São, pelo contrário, os eternos animadores. Entre eles, Plínio Salgado, cuja obra é, toda ela, um só arroubo de fé e confiança no Brasil.[25]
No ano de 1977, ao prefaciar a quinta edição de Como nasceram as cidades do Brasil, Euro Brandão ponderou que, naquele momento, em que se reforçava a difusão da nossa Cultura e se proclamava a necessidade de permanência da Índole Nacional, ou, noutros termos, da nossa Tradição, era muito necessário o revigoramento de “nosso sentimento de brasilidade ao ler e degustar e apreciar e meditar nas páginas de um escritor privilegiado” como Plínio Salgado, numa obra em que se desdobra “o vigoroso sentimento nacional”.[26] Muito mais necessário, porém, tornou-se hoje, para os brasileiros, o robustecimento desse sentimento de Brasilidade, pela leitura e meditação das páginas transbordantes de poesia e sentimento nacional desta preciosa obra.
Isto posto, cumpre salientar que o “vigoroso sentimento nacional” de que nos falou Euro Brandão corresponde ao “justo nacionalismo”, que, no dizer do Papa Pio XI, “a reta ordem da caridade cristã não somente não desaprova, mas com regras próprias santifica e vivifica”,[27] nada tendo que ver com o condenável nacionalismo agressivo e xenófobo, como ressaltou o próprio Euro Brandão.[28] Como aduziu o autor de O século da máquina e a permanência do Homem  (Euro Brandão), este “vigoroso sentimento nacional” é
um conhecer-se do Brasil a si mesmo. É um fortalecer-se na maneira de ser nacional , no cultivo da feição própria de uma Nação com caráter peculiar, feição essa que, se a diferencia, lhe dá também a possibilidade de contribuir com aspectos originais no universal intercâmbio de ideais, soluções e atitudes. Cultivar sua história, seus vultos seus feitos, fortalecendo a consciência de sua peculiaridade como Nação, e, assim, atuar beneficamente no âmbito internacional, é, como conceito, tão importante como a pessoa que cultiva as virtudes de sua personalidade e as reforça, não para sua própria exaltação, mas para ser mais útil no exercício do bem comum.[29]

Como bem sublinhou Euro Brandão, nas páginas de Como nasceram as cidades do Brasil, “em pinceladas de verdadeiro artista”, se desdobram não apenas as histórias da fundação de cidades, do século XVI ao século XX, “mas um vitral de flagrantes motivadores, que, na ênfase e reforço dos contornos, faz rutilar a beleza das epopeias”.[30]
Assim, esta obra, que, no dizer de Brandão, é um “livro de Patriotismo e de Fé”,[31] que nos “ensina a amar o Brasil”[32] e “nos reacende o amor à cousas que realmente ‘valem a pena quando a alma não é pequena’”,[33] aborda, em páginas que muitas vezes fundem História, Tradição e Poesia, temas como a Epopeia das Bandeiras, a obra missionária e educativa dos jesuítas e o papel que tiveram e têm, em nossa História e em nossa Tradição, vultos como aqueles de João Ramalho, Tibiriçá, Anchieta, Caramuru, Raposo Tavares, Anhanguera e Aleijadinho.
Diferentemente de tantos pseudo-historiadores, que só sabem amesquinhar as nossas origens e denegrir a imagem da Nação Portuguesa, de que proviemos, Plínio Salgado, em Como nasceram as cidades do Brasil, faz justiça a Portugal e à sua obra civilizadora e enaltece o gênio imperial lusíada, graças ao qual o Brasil tem mantido, ao longo dos séculos, a sua unidade, e salienta que o maior patrimônio que Portugal legou ao Brasil foi a verdadeira Religião de Cristo.
Isto posto, reputamos ser oportuno frisar que, como fez ver o autor de Como nasceram as cidades do Brasil, este vasto Império que é a nossa Terra de Santa Cruz possui grandes e profundas diferenças regionais, assim como membros e descendentes de diversos povos de todo o Orbe Terrestre, mas todas essas diferenciações se submetem “à ação poderosa de um formidável redutor, a trabalhar continuamente, como estatuário inspirado, na construção maravilhosa da Unidade Nacional”. Tal redutor, nas palavras de Plínio Salgado,
É o gênio lusíada. É o espírito dos fundadores de um grande Império, cujo segredo se encontra nas raízes romanas e cristãs de que provém.
Tão grande tradição, pelos Brasileiros herdada dos Portugueses, constitui a força aglutinadora por excelência, reagindo contra a diversidade do meio físico, a complexidade dos aspectos étnicos e a extensão do espaço geográfico, e sustentando de pé, isento de futuras decomposições, o caráter definido de um dos maiores povos do Mundo.[34]
Havendo citado as linhas em que Plínio Salgado tratou do gênio lusíada, ressaltando o fato de ser ele o pilar sobre o qual se assenta a unidade nacional brasílica, citaremos, a seguir, as linhas finais de Como nasceram as cidades do Brasil, em que o autor proclama que a Fé de Cristo foi o maior patrimônio que o Brasil recebeu de Portugal e que sustentar o Nome e os Ensinamentos de Cristo e viver segundo o Seu Espírito é sustentar a Tradição Luso-Brasileira, o pundonor nacional e as próprias prerrogativas de independência da Nação:
A partir de 1900 o Brasil cresceu vertiginosamente. Os municípios, inicialmente criados com um centro urbano a governar extensões territoriais por vezes maiores do que a Bélgica ou a Suíça, partem-se, repartem-se, tripartem-se, pela transformação rápida das aldeias em cidades; os pioneiros avançam, novos nomes surgem no mapa.
No primeiro período, a cidade começa com a fortaleza e a igreja; no segundo, o da mineração, com as barracas, a roça, a ermida; no terceiro, o do desenvolvimento agrícola e comercial, com o rancho de tropeiros, a venda e a capela; mas, ao desdobrar-se este último ciclo, ao ritmo acelerado do progresso, a cidade começa com a bomba de gasolina, a agência bancária, o campo de futebol, o cinema e a igreja. Logo depois, apita a locomotiva na estação, traça-se o jardim da praça municipal, alindam-se os bangalôs residenciais.
Reparai, porém, numa constante: sob a forma de ermida, capela, ou igreja, de taipa, de pedra, de cimento armado, barrocas, românticas, góticas, modernas, a presença em toda carta geográfica da religião de Cristo.
Foi o maior patrimônio que o Brasil recebeu de Portugal.
*
No espaço de oito milhões e meio de quilômetros quadrados, as cidades brasileiras, por mais diversas que pareçam nos seus aspectos regionais, guardam no íntimo uma só fisionomia, falando, cantando e rezando na mesma língua, “última flor do Latio”, primeira flor da lusitanidade, da latinidade, na América.
Mas nem a identidade dos costumes, nem a uniformidade do teor de vida, nem o condomínio da terra nos dariam a nós, Brasileiros, uma consciência de origem e um sentido de destino histórico nacional e humano, como nos dá esta Fé em Cristo, que constitui o supremo instrumento de expressão da nossa alma de Povo.
Em cada cidade do Brasil canta o sino de uma igreja; em cada igreja está presente Aquele que penetrou a floresta na palavra dos missionários das brenhas selváticas; e, estando em cada igreja, está em cada um dos lares da Pátria, assim como no íntimo de todos os corações.
Sustentar o Seu Nome, e o Seu Ensino, e viver segundo o Seu Espírito, é sustentar a tradição lusíada e nacional brasileira, a honra da Nação e as suas próprias prerrogativas de soberania.[35]
Faz-se mister evocar o fato de que Plínio Salgado, que sempre condenou e combateu todas as formas de racismo, louvou, em Como nasceram as cidades do Brasil, a “nobre confraternidade cristã dos lusitanos com os povos do vasto império” que edificaram e o “matrimônio das raças”, ocorrido no Brasil sob esse espírito de confraternidade cristã,[36] observando que Iracema, lenda da fundação do Ceará, criada por José de Alencar, vem a ser uma “delicadíssima página” dessa nobre confraternidade, essencialmente cristã e lusíada.[37]
Como escreveu Plínio Salgado, Iracema, magno poema em prosa, “obra-prima de José de Alencar, escrita em linguagem ritmada e exuberante de imagens, exprime o simbolismo da formação étnica e social brasileira”. Por meio do cruzamento, a estirpe autóctone despareceu, permanecendo, porém, vivas as suas denominações geográficas e as palavras designativas das árvores, das aves, dos frutos e das flores. Em verdade, porém, em última análise, Iracema não morreu, pois “continua a viver no sangue do filho, condicionada à cultura, à fé religiosa, ao espírito lusitano”, como sua estirpe continua a viver no sangue do povo brasileiro, igualmente condicionada à cultura, à fé religiosa e ao espírito lusitano. É por isso, talvez, que Iracema é um anagrama de América.[38]
Iracema é, enfim, segundo Plínio Salgado, o próprio Novo Mundo, a “terra virgem que o Europeu devia desbravar”, enquanto seu filho, Moacir, “é o fruto de dois mundos que se amaram e agora vivem juntos no mesmo ser”, é o “símbolo da Pátria futura”, é “a profecia do grande Brasil”.[39]
Ao tratar dos bandeirantes da Vila de São Paulo do Campo de Piratininga, em páginas que fundem admiravelmente História, Tradição e Poesia, Plínio Salgado os comparou a águias, afirmando ser a humilde porém altiva e heroica Vila de São Paulo dos primeiros séculos da nossa História um “ninho de águias que devassaram todo o sertão, acometeram o mistério das florestas, dilataram o território da Pátria, fixaram os limites da Grande Nação Brasileira”.[40]
Como fez salientar Plínio Salgado, as bandeiras partidas da Vila de São Paulo do Campo de Piratininga fundaram diversas vilas e povoações que depois se tornaram cidades pelos sertões desta Terra de Santa Cruz/Brasil e também povoaram vilas já existentes,[41] tendo sido, pois, autênticos “plantadores de cidades”.[42]
Ainda como fez ressaltar o autor de A voz do Oeste (Plínio Salgado), as Bandeiras estabeleceram diversas estradas ligando o Brasil de Sul a Norte, exploraram os cursos dos nossos rios, transpuseram todas as serras, romperam com o Tratado de Tordesilhas, de acordo com o qual o Brasil não passaria de uma nesga de Terra à beira do Atlântico. Dilataram, enfim, “os horizontes da Pátria”, não se limitando à descoberta e exploração de ouro e pedras preciosas e tendo continuado “em terra a prodigiosa aventura dos navegantes de Sagres” e lançado “os alicerces da unidade nacional e da grandeza do Brasil”.[43]
Isto posto, cumpre sublinhar que Plínio Salgado, que era um profundo conhecedor da História Paulista e Brasileira, já no dealbar da década de 1920, nas páginas do prestigioso jornal Correio Paulistano, de que era redator, comparava a epopeia luso-brasileira das Bandeiras à anterior epopeia dos navegantes de Portugal, referindo-se aos bandeirantes como “argonautas divinos da nossa grande Epopeia”,[44] numa alusão aos heroicos nautas e guerreiros da Mitologia Helênica. E é mister assinalar, ainda, que, em 1934, publicou Plínio Salgado o há pouco mencionado romance A voz do Oeste, magnífico poema em prosa sobre a epopeia bandeirante, que inspirou Juscelino Kubitschek a edificar Brasília[45] e que, enquanto romance sobre a epopeia das Bandeiras Paulistas, só pode ser comparado à obra A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz, e, enquanto poema sobre a mesma epopeia, pode ser apenas comparado a O caçador de esmeraldas, de Olavo Bilac, a Os bandeirantes, de Baptista Cepelos, a Armorial, de Paulo Bomfim, e aos versos dedicados ao tema por Gerardo Mello Mourão, em Invenção do mar.
Não podemos encerrar a presente conferência sobre a obra Como nasceram as cidades do Brasil sem antes destacar o fato de que Plínio Salgado foi um ardoroso defensor do Municipalismo desde a mocidade, quando fundou, com Gama Rodrigues, o Partido Municipalista, sendo o Municipalismo, em verdade, pedra angular da sólida e profunda Doutrina política de Plínio Salgado,[46] Doutrina esta que, conforme observou Heraldo Barbuy, é necessária por firmar os autênticos conceitos do Homem, da Sociedade e do Estado,[47] e que se constitui, antes de tudo, como aduziu Francisco Elías de Tejada, numa “teoria da Tradição brasileira com traços de granítico castelo, destinado a suscitar adesões para quem queira em tempos vindouros conhecer a substância do Brasil”.[48]
Fechamos esta singela conferência assinalando que Plínio Salgado, este “descobridor bandeirante das essências de sua pátria”, na expressão de Francisco Elías de Tejada,[49] e “Bandeirante da Fé e do Império”, como escrevemos alhures,[50] deu e dá à Cultura Brasileira, na grande obra que é Como nasceram as cidades do Brasil, um admirável “roteiro”, por meio do qual muitos poderão descobrir a História e a Tradição da nossa Terra de Santa Cruz.

Por Cristo e pela Nação!

Victor Emanuel Vilela Barbuy,
Presidente Nacional da Frente Integralista Brasileira,
São Paulo, 25 de abril de 2017-LXXXIV.


* Versão revista e ampliada da comunicação apresentada a 25 de abril de 2017 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), durante a XI Semana de Filologia na USP.



[1] Tal movimento foi e é o Integralismo, que se constituiu no primeiro “movimento de massas” da História do Brasil e formou o primeiro partido verdadeiramente nacional desde o ocaso do Império, bem como, na expressão de Gerardo Mello Mourão, o “mais fascinante grupo da inteligência do País” (Entrevista concedida ao Diário do Nordeste, de Fortaleza, em 24 de outubro de 1996. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=414001. Acesso em 25 de abril de 2017).
[2] Gente de casa: retratos de homens & perfis de ideias, Lisboa, Sigma, 1948, p. 89.
[3] Idem, loc. cit.
[4] Sobre as atividades realizadas por Plínio Salgado durante o exílio em Portugal, bem como sobre o reconhecimento que ali recebeu dos mais altos vultos do pensamento católico lusitano: Augusta Garcia R. DOREA, Plínio Salgado, um apóstolo brasileiro em terras de Portugal e Espanha, São Paulo, Edições GRD, 1999.
[5] Fernando de AGUIAR, Gente de casa: retratos de homens & perfis de ideias, cit., loc. cit.
[6] Idem, pp. 111-112.
[7] Dentre tais ilustres portugueses podemos destacar as figuras de Hipólito Raposo, de Pequito Rebelo, do Conde de Monsaraz, do Visconde de Santarém, de Domingos Megre e de Leão Ramos Ascensão, todos destacados vultos do Integralismo Lusitano, movimento que reuniu, no dizer de Plínio Salgado, “a plêiade mais brilhante dos pensadores políticos lusíadas dos últimos tempos” (O agradecimento, in Uma reportagem histórica, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam”, vol. II, São Paulo, Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1986, p. 196. Texto originalmente publicado no jornal A Voz, de Lisboa, a 23 de junho de 1946).
[8] O agradecimento, in Uma reportagem histórica, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam”, vol. II, cit., pp. 197-198.
[9] Carta a Plínio Salgado, in Plínio SALGADO, Vida de Jesus, 22ª edição, São Paulo, Voz do Oeste, 1985, pp. IX/XI.
[10]  Um livro de Plínio Salgado, in Plínio SALGADO, Como nasceram as cidades do Brasil, 5ª edição, Prefácio de Euro Brandão, São Paulo/Brasília, Voz do Oeste/Instituto Nacional do Livro, 1978, p. 192. Texto originalmente publicado no jornal Idade Nova, do Rio de Janeiro, no dia 27 de outubro de 1946.
[11] Plínio Salgado. Disponível em: http://www.integralismo.org.br/?cont=781&ox=398#.WQx_xNIrLIU. Acesso em 25 de abril de 2017.
[12] A Igreja e o pensamento contemporâneo, 4ª edição (com algumas notas inéditas), Coimbra, Coimbra Editora, 1944, p. 385.
[13] Gente de casa: retratos de homens & perfis de ideias, cit., p. 122.
[14] Lembranças de um amigo em Lisboa, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam", vol. II, cit., p. 101.
[15] Vida de Jesus, de Plínio Salgado, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam”, vol. II, cit., pp. 146-147.
[16] Plínio Salgado: o homem, a atividade, a obra-prima, in in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam”, vol. II. São Paulo, Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1986, p. 159.
[17] Plínio Salgado na Tradição do Brasil, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam”, vol. II, cit., p. 52.
[18] Plínio Salgado ou a nova luta por Cristo, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam", vol. II, São Paulo, Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1986, p. 129.
[19] [Orelha do livro], in Plínio SALGADO, Como nasceram as cidades do Brasil, 5ª edição, cit.
[20] Como nasceram as cidades do Brasil, 5ª edição, cit., p. 9.
[21] Idem, página não numerada.
[22] Um livro de Plínio Salgado, in Plínio SALGADO, Como nasceram as cidades do Brasil, 5ª edição, cit., p. 193.
[23] Idem, loc. cit.
[24] Idem, loc. cit.
[25] Idem, pp. 193-194.
[26] Prefácio, in Plínio SALGADO, Como nasceram as cidades do Brasil, 5ª edição, cit., p. XI).
[27] Encíclica Caritate Christi Compulsi. Disponível (em latim) em: http://w2.vatican.va/content/pius-xi/la/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19320503_caritate-christi-compulsi.html. Acesso em 25 de abril de 2017. A expressão “Nationem pietatis” foi traduzida como  “nacionalismo” em diferentes versões da Encíclica, como a italiana que consta do portal oficial do Vaticano (Disponível em: http://w2.vatican.va/content/pius-xi/it/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19320503_caritate-christi-compulsi.html. Acesso em 25 de abril de 2017).
[28] Prefácio, in Plínio SALGADO, Como nasceram as cidades do Brasil, 5ª edição, cit., loc. cit.
[29] Idem, loc. cit.
[30] Idem, pp. XI-XII.
[31] Idem, p. XIII.
[32] Idem, p. XII.
[33] Idem, p. XIV.
[34] Como nasceram as cidades do Brasil, 5ª edição, cit., p. 20.
[35] Idem, pp. 163-165.
[36] Idem, p. 55.
[37] Idem, loc. cit.
[38] Idem, p. 56.
[39] Idem, loc. cit.
[40] Idem, pp. 96-97.
[41] Idem, p. 99.
[42] Idem, p. 101.
[43] Idem, loc. cit.
[44] O novo bandeirismo, in Correio Paulistano, anno , nº 21493, São Paulo, 11 de maio de 1923, p. 3.
[45] Cf. Juscelino KUBITSCHEK, Carta a Plínio Salgado, in VV.AA., Plínio Salgado: “In memoriam”, vol. I., São Paulo, Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1985, p. 223.
[46] Plínio SALGADO, Carta a Sylvio Jaguaribe Ekman, in Pedro PAULO FILHO, Campos do Jordão, o presente passado a limpo. São José dos Campos, Vertente, 1997, p. 70.
[47] Cf. A MARCHA, Plínio Salgado falou aos estudantes da Universidade Católica de São Paulo, in A Marcha, ano I, n. 26, 14 de agosto de 1953, p. 1.
[48] Plínio Salgado na Tradição do Brasil, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam”, vol. II, cit., p. 53.
[49] Idem, p. 70.
[50] Plínio Salgado, Bandeirante da Fé e do Império. Disponível em: http://www.integralismo.org.br/?cont=781&ox=71#.WQ-45sZv_IU. Acesso em 25 de abril de 2017.

Wednesday, May 13, 2015

A Tradição[i]




Nau portuguesa do século XV, em ilustração de Alfredo Roque Gameiro
Na presente comunicação, trataremos do conceito de Tradição, demonstrando que é esta o pilar e a seiva da Nação e a base de todo progresso autêntico.
Uma vez que o vocábulo “Tradição” não é unívoco, cumpre sublinhar que aqui entenderemos a Tradição segundo a compreende o tradicionalismo político, que não se confunde com o tradicionalismo filosófico de de Maistre, de Bonald, Lamennais e Ventura di Raulica, e tampouco com o chamado “tradicionalismo esotérico” de Guénon, Evola e Schuon, e que, de acordo com a raiz etimológica do termo “Tradição”, defende o enaltecimento de um patrimônio de cultura e de valores substanciais de uma Sociedade, passado de geração em geração por meio de uma “entrega constante”.[1] Noutras palavras, conforme aduzimos algures,[2] o tradicionalismo político, que se nutre da metafísica da Filosofia Perene, que tem em Santo Tomás de Aquino seu máximo expoente, concebe a Tradição como sendo a transmissão de um patrimônio de valores espirituais, culturais e religiosos essenciais às nações, de uma geração a outra, ou, como diria Marcello Veneziani, “de pai para filho”,[3] partindo do princípio de que, conforme asseverou Alfredo Pimenta, “Nação que rejeita a Tradição é Nação que se suicida, que se nega a si própria”.[4]
Como igualmente observamos alhures,[5] o tradicionalismo político vê a Tradição como essencialmente histórica, inserida, nas palavras de Alberto Buela, “como coisa valiosa no sangue vivo dos povos”,[6] sendo, na lição de Francisco Elías de Tejada, a “medula dos povos”, assim como uma excelente “filosofia política”, a “filosofia do homem concreto” e das liberdades concretas e limitadas,[7] em oposição à ideologia liberal do homem abstrato e da liberdade abstrata.
A palavra Tradição deriva do vocábulo latino traditio, que, por sua vez, deriva de tradere, termo que possui o significado de entregar ou de dar e, por seu turno, procede da raiz indo-europeia , que podemos traduzir como dar. Como escreveu Ricardo Dip, ao primitivo indo-europeu se antepôs a preposição latina trans, que significa além, ir além, ou de um lado a outro e que, a um tempo, se pronunciava tras, o que permitiu a redução para tra, como aparece em vocábulos como tradere e traditio.[8] A este último termo latino corresponde o vocábulo grego παράδοσις (parádosis), que igualmente possui o significado de “transmissão”.[9]
Tanto pela preposição latina trans quanto pelo termo indo europeu , significa o vocábulo traditio “algo que transita de alguém, ou de algo, para além; alguma coisa que se dá ou se entrega de um lado a outro”. Este essencial dinamismo do significado da palavra traditio é, com efeito, muitíssimo relevante, conforme ponderou Dip, para acentuar o absurdo erro no entendimento que reserva ao vocábulo “tradição” a nota, incondicional, de estaticidade, de oposição ao progresso ou de conservação total.[10]
A Tradição vem a ser a entrega constante, ao longo das gerações, de um patrimônio de valores comuns, mantidos em sua essência, corrigidos sempre que necessário e incessantemente aprimorados,[11] representando, nas palavras de António Sardinha, a “continuidade no desenvolvimento” e a “permanência na renovação”.[12] Alhures definida por nós, em paráfrase a José de Alencar, como a “arca veneranda da sabedoria de nossos maiores, consolidada pelos séculos e apurada pelas gerações”,[13] a Tradição não é todo o Passado, mas tão somente aquela porção do Passado que, no dizer de Víctor Pradera, “qualifica suficientemente os fundamentos doutrinais da vida humana de relação”, isto é, “o passado que sobrevive e tem virtude para fazer-se futuro”,[14] ou, no dizer de Plínio Salgado, o “Passado Vivo”,[15] ou, ainda, nas palavras de Ribeiro Couto, o “Passado que é presente e que é futuro”.[16] Neste sentido, assim distinguiu Hélio Rocha a Tradição do Passado:
                                         Tradição não é simplesmente o passado.
O passado é o marco. A Tradição é a continuidade.
O passado é o acontecimento que fica. A Tradição é o fermento que
prossegue.
O passado é a paisagem que passa. A Tradição é a corrente que
continua.
O passado é a mera estratificação dos fatos históricos já realizados.
A Tradição é a dinamização das condições propulsoras de novos fatos.
O passado é estéril, intransmissível. A Tradição é essencialmente
fecundadora e energética.
O passado é a flor e o fruto que findaram. A tradição é a semente que
perpetua.
                                         O passado é o começo, as raízes. A Tradição é a seiva circulante, o
prosseguimento.
O passado explica o ponto de partida de uma comunidade histórica.
A tradição condiciona o seu ponto de chegada.[17]
O passado é a fotografia dos acontecimentos. A tradição é a sua
cinematografia.
Enfim: Tradição é tudo aquilo que do passado não morreu.[18]
            Assim, a Tradição é, como prelecionou Francisco Elías de Tejada, “a entrega daquilo que possui forças vitais suficientes para influir em nossos atual acontecer”,[19] ou, na expressão de José Pedro Galvão de Sousa, “o passado que não passa, por encerrar uma força vivificadora que se projeta para o futuro”,[20]  não se confundindo, pois, com o passadismo, o imobilismo, o fixismo, o conservantismo estático. Neste sentido, assim distinguiu Gustavo Barroso a Tradição do saudosismo:
Tradição é uma coisa; saudosismo, outra. A tradição vivifica; o saudosismo mata. A tradição é um olhar que se deita para trás, a fim de buscar inspiração no que os nossos maiores fizeram de grande e imitá-los ou superá-los. O saudosismo é o olhar condenado da mulher de Lot, que transforma em estátua de sal. A tradição é um impulso que vem do fundo das idades mortas dado pelas grandes ações dos que permanecem vivos no nosso culto patriótico. O saudosismo é um perfume de flores fanadas que envenena e enerva. A tradição educa. O saudosismo esteriliza.
Amar as tradições da terra, da raça, dos heróis é buscar nos exemplos do passado a fé construtiva do futuro. Mergulhar dentro delas para carpir a pequenez do presente diante de sua grandeza é confessar a própria impotência e a própria incapacidade.
Da tradição nos vêm gritos de incitamento. Do saudosismo nos vêm lamentos e jeremiadas. Uma nação se constrói com aqueles gritos e se perde com essas lamentações. Por isso, o Integralismo é tão tradicionalista quanto é "antissaudosista".[21]
Destarte, o verdadeiro tradicionalista, ao contrário do passadista, aceita do Ontem apenas as forças capazes de influir sobre o Hoje e, em larga medida, sobre o Amanhã, defendendo, pois, a necessidade de um retorno não ao Passado enquanto tal, mas aos valores eternos que floresceram nos melhores tempos do Passado, que nos deve interessar como “base e matriz do Porvir”, como escreveu Gustave Thibon,[22] assim como aos valores do Pretérito que, embora não eternos, são duradouros e permanecem vivos no Presente. Do mesmo modo, o tradicionalista autêntico, ao contrário do conservantista estático, rejeita os elementos contrários à Tradição e as tradições espúrias presentes nos tempos que correm, não se agarrando, pois, nem ao Passado nem ao Presente como a uma tábua de salvação, e sendo, em verdade, o único verdadeiro senhor do Porvir. E se o homem moderno é, segundo Chesterton, "um viandante que se perdeu na estrada" e que "tem de regressar ao ponto de partida, se quiser se lembrar de onde veio e para onde vai",[23] o tradicionalista, consciente de onde veio e para onde vai, tem a honra de ser, nos tenebrosos tempos correntes, um inatual, um extemporâneo, ou, noutras palavras, um homem contra a corrente, que Sócrates, defensor da Tradição contra os sofistas antitradicionalistas, consideraria um homem dotado de alma de ouro vivendo em plena “Idade do Ferro”.
Vista por alguns como figadal inimiga do progresso, é a Tradição, ao contrário, a base, o alicerce de todo progresso autêntico e estável, havendo sido denominada, com efeito, “progresso hereditário” por Vázquez de Mella.[24]  Nesta mesma linha de raciocínio, escreveu Michele Federico Sciacca que “não há progresso verdadeiro ou construtivo sem tradição”, da mesma forma que “não há tradição viva e operante sem progresso”,[25] e Plínio Salgado, em estudo sobre a obra de Francisco Elías de Tejada, sublinhou que “Tradição e Progresso estão de tal sorte unidos, que este não pode existir sem aquela nem aquela sem este”.[26] No mesmo sentido, em ensaio sobre o Quarto Centenário da cidade de São Paulo, o mesmo Plínio Salgado, pouco depois de haver ressaltado que “a tradição do povo bandeirante vai buscar raízes na capacidade de expansão lusíada e no caráter cristão dos nossos primeiros aglomerados humanos”, escreveu que se pode dizer que a palavra “tradição” é sinônimo de “progresso”. Isto porque, como observou o escritor e pensador patrício, “se, etimologicamente, ‘tradição’ significa transmitir do passado para o futuro, também ‘progresso’, sendo, ao contrário de ‘regresso’, a propulsão para a frente”, pressupõe, logicamente, “uma posição anterior determinando uma posição posterior, o que, em última análise, é movimento do passado para o futuro”.[27]  
Assim, a Tradição é o alicerce de todo Progresso digno deste nome, da mesma forma que o respeito ao Passado é a base sobre a qual se assenta todo Futuro grande e sólido, ou, nas palavras de Arlindo Veiga dos Santos, “o pretenso progresso que renega a tradição é eterno recomeço, perpétua imperfeição”,[28] do mesmo modo que “o Presente que nega o Passado não terá Futuro”.[29]
Fio que une as gerações presentes às pretéritas e às futuras, deve ser a Tradição compreendida, pois, não como uma relíquia de museu ou um ser fossilizado, mas sim como uma força viva, dinâmica e atuante, que não se constitui na antítese do Progresso, mas em seu pressuposto. “Fonte de permanente renovação”, na frase de Alfredo Buzaid, a Tradição nos subministra, conforme enfatizou este, “o passado vivo, com os seus exemplos, as suas aspirações, o seu legado de saber e de experiências”.[30]
A Tradição, realidade viva e dinâmica, tem importância central na estruturação das instituições políticas de uma nação, e define a identidade, o caráter desta, assim como a sua missão histórica, conforme assinalou Heraldo Barbuy.[31] Neste diapasão, no estudo há pouco citado sobre Francisco Elías de Tejada, ponderou Plínio Salgado que “a Tradição é o caráter da Nação” e, assim como para o homem isolado o caráter vem a ser, em última análise,
a memória de cada ato individual e do conjunto dos atos individuais na sua vida de relação com outros homens e com o conjunto social, informando permanentemente o “fazer” e o 'que fazer' no presente e no futuro, também o caráter de uma Nação consiste nessa faculdade de lembrar, de trazer em dia as atitudes pretéritas, para harmonizar o que foi, o que é e o que virá, num sentido de afirmação de personalidade.[32]
 Pouco adiante, havendo ressaltado que não se utilizava, num caso como no outro, do termo “memória” somente no sentido naturalista ou experimentalista da psicologia, mas também com um “sentido espiritual de permanência” e mesmo de “consciência de vocação”, o autor de Reconstrução do Homem e O ritmo da História asseverou que “perder a Tradição, para os indivíduos, como para os povos, é perder a memória e, com esta, a noção do seu próprio ser e do seu definido que-fazer”. É, em uma palavra, “o embrutecimento, que prepara o homem, como as coletividades humanas, para a abdicação de toda liberdade e a extrema degradação dos cativeiros políticos, econômicos e morais."[33]
Afastada da Tradição, a política acabou dominada pelo “idealismo utópico” de que nos falou Oliveira Vianna[34] e que corresponde à “política silogística” denunciada por Joaquim Nabuco[35] e à “política abstrata” de que nos falou José Pedro Galvão de Sousa.[36] Este idealismo, de ruinosas consequências para todo o chamado tecido social, também pode ser denominado idealismo inorgânico e vem a ser o idealismo que não toma em consideração os dados da experiência,[37] ou, noutras palavras, da Tradição e da História, podendo ser definido como sendo “todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende reger e dirigir”.[38]
Ao idealismo utópico, os verdadeiros tradicionalistas e realistas devem opor o “idealismo orgânico”, de que igualmente nos falou Oliveira Vianna e que corresponde, por sua vez, ao “idealismo fundado na experiência” de que nos falou José Ingenieros[39] e ao “idealismo construtor” sustentado por Gustavo Barroso[40] e Plínio Salgado.[41] É este, como escrevemos algures,[42] o idealismo consciente de que as instituições devem brotar da Tradição e da História dos povos e não da cabeça de ideólogos forjadores de quimeras e utopias, isto é, o idealismo que extrai da História uma Tradição sólida e viva, um coeficiente espiritual de edificação moral, social e cívica, um desenvolvimento estável e verdadeiro, transmissor e enriquecedor do patrimônio de pensamento e de costumes herdado de nossos maiores.
Por fim, cumpre sublinhar que a fidelidade às raízes, raízes do Homem enquanto ser essencialmente histórico e tradicional, exprime o mais profundo sentido de Tradição, que não exclui, de forma alguma, a razão criadora.[43] Em verdade, podemos dizer que não há doutrina política mais racional do que o tradicionalismo, tanto quanto podemos dizer que não existem ideologias mais irracionais do que aquelas produzidas pelo denominado racionalismo e tanto quanto podemos dizer que inexiste doutrina política mais renovadora e revolucionária na acepção mais própria e tradicional do termo do que o tradicionalismo. Assim, conhecedores da História, da Tradição e de suas lições e conscientes de que, como escreveu Heidegger, “tudo o que é essencial e grande surgiu do fato de que o homem tinha uma pátria e estava radicado em uma tradição”,[44] bem como do fato de que fora da Tradição não há progresso nem renovação, mas apenas decadência e anarquia, os tradicionalistas, “homens do eterno”, na expressão de Thibon,[45] e, destarte, os únicos verdadeiros senhores do Futuro, devem lutar, com todas as suas forças e sem nada esperar em troca, para que o homem e a Sociedade retornem ao ponto de partida, que não é senão a Tradição.

Victor Emanuel Vilela Barbuy, Presidente Nacional da Frente Integralista Brasileira.
São Paulo, 4 de maio de 2015.


[1] Cf. José Pedro Galvão de SOUSA, Clovis Lema GARCIA e José Fraga Teixeira de CARVALHO, Dicionário de Política, São Paulo, T.A. Queiroz, 1998, p. 535.
[2] Tradição e Revolução.
[3] De pai para filho: elogio da Tradição, Tradução de Orlando Soares Moreira, Edições Loyola, 2005. Obra originalmente escrita em italiano.
[4] In Fernando CAMPOS (Organizador),Os nossos mestres ou Breviário da Contra-revolução: juízos e depoimentos, Lisboa, Portugália Editora, 1924, p. 147.
[5] Tradição e Revolução. Disponível em: http://www.integralismo.org.br/?cont=781&ox=320#.VVKcA5NhLQc. Acesso em 02 de maio de 2015.
[6] Metapolitica y tradicionalismo. Disponível em: http://disenso.info/?p=1949. Acesso em 02 de maio de 2015. Tradução nossa.
[7] La lección política de Navarra, in Reconquista, ano I, volume I, n. 2, São Paulo, 1950, p. 127. Tradução nossa.
[8] Segurança jurídica e crise pós-moderna, São Paulo, Quartier Latin, 2012, p. 35.
[9] Cf. Félix Adolfo LAMAS, Tradición, tradiciones y tradicionalismos, in Ricardo DIP (Organizador), Tradição, revolução e pós-modernidade, Campinas, Millennium, 2001, p. 26.
[10] Segurança jurídica e crise pós-moderna, cit., loc. cit.
[11] Cf. Victor Emanuel Vilela BARBUY, Idealismo utópico e idealismo orgânico. Disponível em: http://www.integralismo.org.br/?cont=781&ox=137. Acesso em 02 de maio de 2015; José Pedro Galvão de SOUSA, Clovis Lema GARCIA e José Fraga Teixeira de CARVALHO, Dicionário de Política, São Paulo, T.A. Queiroz, 1998, p. 533.
[12] Ao princípio era o Verbo, 2ª edição, Lisboa, Editorial Restauração, 1959, p. 10.
[13] Idealismo utópico e idealismo orgânico, cit. O trecho de José de Alencar por nós parafraseado se encontra em A propriedade, Prefação do Conselheiro Dr. Antônio Joaquim Ribas, Rio de Janeiro, B. L. Garnier – Livreiro-Editor, 1883, p. 2.
[14] O Novo Estado, Tradução portuguesa, Lisboa, Edições Gama, 1947, p. 15.
[15] O ritmo da História, 3ª edição (em verdade 4ª), São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1978, p. 205.
[16] Entre mar e rio, 3ª edição, in Poesias reunidas, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1960, p. 446.
[17] Cumpre ressaltar que, diversamente de Hélio Rocha, consideramos que a Tradição, embora sendo a “seiva circulante” e o “prosseguimento”, representando a “continuidade” e condicionando o “ponto de chegada” de uma comunidade, não deixa também de ser, como o Passado, um “marco”, e de representar também o “começo”, as “raízes” de uma comunidade.
[18] Apud Derval Cardoso GRAMACHO, Toré: uma tradição inventada na etnogênese dos Kiriri, Dissertação apresentada ao Colegiado do Curso de Mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, do Campus V da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), como requisito para obtenção do grau de Mestre, Santo Antônio de Jesus, Bahia, 2010, p. 7.
[19] La causa diferenciadora de las comunidades políticas – Tradición, Nación e Imperio, Madrid, Instituto Editorial Reus, 1943, p. 16. Tradução nossa.
[20] Dicionário de Política, São Paulo, T.A. Queiroz, 1998, p. 535
[21] Espírito do século XX, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira S/A, 1936, pp. 263-264.
[22] Les hommes del’éternel, Paris, Editions Mame, 2012, p. 115. Tradução nossa.
[23] The New Jerusalem, Londres, Hodder & Stoughton, 1920, p. I. Tradução nossa.
[24] Vázquez de Mella (antologia), Seleção, estudo preliminar e notas de Rafael Gambra, s/d, p. 22. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/29642956/Vzquez-de-Mella-Antologia. Acesso em 02 de maio de 2015.Tradução nossa.
[25] Revolución, Conservadurismo, Tradición, in Verbo, série XIII, número 123, Madri, Março de 1964, p. 293. Tradução nossa.
[26] O ritmo da História, 3ª edição (em verdade 4ª), São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1978, p. 205.
[27] Atualidades brasileiras, 2ª edição, in Obras completas, 2ª edição, volume 16, São Paulo, Editora das Américas, 1959, p. 371.
[28] Sob o signo da fidelidade: considerações históricas. São Paulo: Pátria-Nova, s/d, p. 4.
[29] Ideias que marcham no silêncio. São Paulo: Pátria-Nova, 1962, p. 76.
[30] A missão da Faculdade de Direito na conjuntura política atual, in Ensaios literários e históricos, São Paulo, Editora Saraiva, 1983, p. 228.
[31] A Nação e o Romantismo, in O problema do ser e outros ensaios, São Paulo, Convívio, Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 1984, p. 276.
[32] O ritmo da História, 3ª edição (em verdade 4ª), São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1978, p. 209.
[33] Idem, pp. 209-210.
[34] Sobre o idealismo utópico, assim como sobre seu oposto, o idealismo orgânico: Victor Emanuel Vilela BARBUY, Idealismo utópico e idealismo orgânico. Disponível em: http://www.integralismo.org.br/?cont=781&ox=137. Acesso em 02 de maio de 2015.
[35] Balmaceda. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1937, p. 15.
[36] Valores eternos, in Reconquista, ano I, volume I, número 2, São Paulo, 1950, p. 138.
[37]  Cf. Oliveira VIANNA, O idealismo da Constituição, 2ª edição aumentada, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1939, p. 12.
[38] Idem, p. 10.
[39] O homem medíocre, Tradução não assinada, São Paulo: Cultura Moderna, 1936, p. 14.
[40] Carta à Mocidade Brasileira, in O Integralismo em marcha, 1ª edição, Rio de Janeiro, Schmidt, Editor, 1933, p. 12.
[41] Discursos, 3º edição, in Obras Completas, 2ª edição, volume 10, São Paulo, Editora das Américas, 1957, p. 357.
[42] , Idealismo utópico e idealismo orgânico, cit.
[43] Cf. José Pedro Galvão de SOUSA, Clovis Lema GARCIA e José Fraga Teixeira de CARVALHO, Dicionário de Política, cit., p. 533.
[44] Ormai solo un dio ci si può salvare. Intervista con lo “Spiegel”. Trad. italiana de A. Marini. Parma: Guanda, 1987, p. 135. Tradução nossa.
[45] Les hommes del’éternel, Paris, Editions Mame, 2012.


[i] Comunicação apresentada a 5 de maio de 2015, na X Semana de Filologia na USP, realizada na Sala de Videoconferência de Filosofia e Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.